30
Ago 08
30
Ago 08

THE END

Morrer num hospital tem destas consequências;
o velório é mais pequeno do que se fosse em casa.
Além disso os brincos desapareceram de repente
e só pensamos no telefonema perdido -- o funeral que atrasa.

Deve ser triste imaginar estes passos todos
com a raiva de não poder vencer a distância
e por entre as lágrimas abundantes começar a recordar
as primeiras páginas da história doméstica -- a infância.

No fim de contas trata-se talvez só de aritmética
esta operação que se desenrola no cemitério:
a soma das lágrimas que todos nós choramos
é igual às que ela chorou por nós -- não há mistério.

E o monte que o coveiro lentamente vai cavando
tem para mim o sentido que o momento encerra:
é um pouco de mim que desce para esta cova
nas minhas palavras misturadas com a terra.

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 23:22 | comentar | favorito
25
Ago 08
25
Ago 08

...

Não adormeças logo agora
que eu estava mais disposto e fluente
a falar-te, ainda que de novo, da contemporaneidade

ou não adormeça eu
logo agora
que o teu cabelo se encosta
à suavidade das almofadas
animando o amor do Donald e da Daisy
que, entretanto, já transpuseram
a barreira lisa do pano e do desenho
e se encaminham já para o quarto ao lado.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues
publicado por RAA às 23:26 | comentar | favorito
24
Ago 08

DOS PINHAIS

Ondulando, os pinhais
quiseram ser o mar.
Murmurando, quiseram ser
o vento. Mas somente
no meu ouvido eram vento,
nos meus olhos, mar.

E hoje, ali na encosta,
pinhais bordejam
o mar, sustêm o vento.


Fiama Hasse Pais Brandão
s#3
publicado por RAA às 23:22 | comentar | favorito
24
Ago 08

ARDE UM FULGOR EXTINTO

Arde um fulgor extinto
no longe da tarde agoniada.
Não me pesaria tanto
a caminhada se, em lugar do dia,
no seu extremo achasse a noite.

Exacta e concisa é a claridade.
Não mente à luz o que a noite
ilude. Terrível destino
o de quem é nocturno à luz solar.

Não vos ponha em cuidado,
porém, este meu penar:

são palavras e não sangram.

Rui Knopfli
publicado por RAA às 03:46 | comentar | favorito (1)
21
Ago 08
21
Ago 08

"EL SORDO" *

na noite dos tormentos, nessa noite
em que os fantasmas deambulavam
pelo coração, olhou as paredes nuas
cegou-se de branca ausência, tamanho
cerco, e abriu janelas ao silêncio:
pintou terror, inferno, eternidade.
sonhara o sonho da razão
e o seu testamento escorreu lesto
pelos olhos da solidão.
aí, porque ouvira de novo o mundo
produziu monstros, como seria de esperar
do mundo


*(Goya)

João Candeias
publicado por RAA às 23:45 | comentar | favorito
20
Ago 08
20
Ago 08

ELEGIA BRANCA

Cabelos brancos de minha mãe
Ausência branca de minha mãe

Corpo de rosa branca de minha mãe
Sangue de rosa vermelha de minha mãe

Luto carregado de lírios brancos por minha mãe
Lírios brancos carregados de luto por minha mãe

Lx. 10.V.92
António Barahona
publicado por RAA às 23:16 | comentar | favorito (1)
16
Ago 08
16
Ago 08

BANCO DE TRÁS

Sábado à tarde, uma certa luz
Atravessa a rua no meio dos telhados
Retoques no carro, aguarrás no pincel
E o tricot no banco da frente, rápido

Domingo, o almoço em qualquer lugar
Longe daqui, desta tristeza sem voz
Mas o preço da gasolina sobe depressa
Cortando os domingos do mês, quase todos

No banco de trás o cão dorme
Sem fralda nem ternura como criança
Ficará só o beijinho da fotografia
Cão objecto que deitarão fora como cigarro

Ninguém rouba este automóvel nunca
A loucura é feita neste lugar
Cigarros, jornais, música e sono
Sempre na preguiça dos minutos

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 02:42 | comentar | favorito
14
Ago 08

...

Encontrou naquele janeiro trabalho
nas obras.
O seu melhor era o abrir da lancheira
o termo de alumínio canelado protegendo

o espelhado vidro
o café mantinha-se quente por muitas
horas.
As botas de velhos atacadores já com

buracos
as grossas meias de algodão a camisola
rota num dos braços o fato-macaco
a negra barba mal feita e os tijolos

erguendo a lenta parede dos dias.
O reboco o triturar a pedra
o cimento quase parte das mãos
a poeira doendo os olhos.

Sem ninguém, entre as fasquias andaimes e
caliça
sem espaço para legenda bebe café entre
o vigésimo terceiro e quarto andar.

João Miguel Fernandes Jorge
publicado por RAA às 23:50 | comentar | favorito
14
Ago 08

RUA DE COOLELA

No ângulo extremo da Ponta Vermelha,
lá onde a ruína do farol é sentinela decrépita,
traçado linear pendendo para a incerteza
da barreira sujeita aos caprichos das enxurradas
de verão. Sentado no degrau, diante

do eucalipto gigantesco a interditar o horizonte.
O quintal barricado do Hugh Lemay,
agente transitário e (secreto) de Sua Majestade.
Que conste, pelos seus bons ofícios, as frotas
nazi e italiana sofriam pesadas baixas

ao largo da costa. Havia também
Marina, filha mais velha do pianista
do casino, pernas magras enfeitiçando,
qual deusa na selva dos comic books,
o meu desejo obscuro. Em redor habitações

modestas de pequenos funcionários e da tropa
pequena, a cumplicidade dos companheiros
partilhando amizade nos esconderijos
da exaurida e obsoleta Carreira de Tiro,
fascínio misterioso e intrigante,


oculto na densa camuflagem do baldio,
velha fortaleza a recato de olhares indiscretos:
um mundo tecido de fantasia a encobrir
a exígua, quase anónima, rua que conduziria,
afinal, ao curso errado de meus dias.

Rui Knopfli
publicado por RAA às 01:27 | comentar | ver comentários (2) | favorito
13
Ago 08
13
Ago 08

DA ÁRVORE, NUMA RUA DE LISBOA

Esta árvore só, insana,
chamou a si todos os pássaros
da rua. E aceita, assim,
mil olhos que, no crepúsculo
da tarde, se fecham,
mil olhos, abertos
no crepúsculo da manhã.


Av. da República, 1996
Fiama Hasse Pais Brandão
s#2
publicado por RAA às 01:33 | comentar | favorito