29
Out 08
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Out 08

...

A humidade escorre pelas paredes.
A tinta retorce-se.
Grelado nas paredes
diz a vizinha.
Certo.

Em cima da mesa
os jornais estão cheios de cotão.
Deixá-los estar.
Também lá dentro
no quarto
a minha mãe se deixa estar.
A tudo isto pertence.
É preciso não a incomodar.
Tem o coração cansado
os olhos com pó.
Caruncho, diz ela.
É verdade.
Que noite pavorosa
por esse corpo vai.

Mas sem essa noite
que seria do meu dia?
Breu?
Nada?
Horror?
Uma mãe
mesmo depois de morta
dá-nos o seio.

Que é a Via Láctea
senão o leite da nossa eterna inocência?

António Cândido Franco
publicado por RAA às 23:41 | comentar | ver comentários (6) | favorito
21
Out 08
21
Out 08

...

(A uma árvore seca num velho pátio da
Rua da Palma.)

Todos os dias passo à tua beira
árvore que tens nos troncos e na rama
um destino igual ao meu.
E o mesmo rumo
sem chama
nem fumo.

Aranha de solidão
a tecer como eu
cinzas de não haver fogueira.

Todos os dias passo à tua beira...

(Mas ai de quem só tem chão!
-- sem labaredas
nem asas de um momento
para ir procurar veredas
no país do vento!)

José Gomes Ferreira
s#7
publicado por RAA às 22:41 | comentar | ver comentários (2) | favorito
20
Out 08
20
Out 08

...

O lenhador caminha curvado pelo peso.
Leva às costas séculos de madeira.
Queima-la-á para se aquecer um instante.

Adalberto Alves
publicado por RAA às 00:05 | comentar | ver comentários (3) | favorito
13
Out 08
13
Out 08

A NOITE-VIÚVA

Uma pequena angústia sentida nos joelhos
Como o bater do próprio coração
E é a noite que chega
Não a noite-diamante
Mas a noite-viúva a noite
Sete vezes mais impura do que eu
Em passo obsceno em obscena força
Minúscula perversa venenosa

Escrevo o teu nome
Noite de amor que de longe me defendes
Escrevo o teu nome contra a noite obscena
Que a meu lado espera seduzir-me
Levar-me consigo
À porca solidão onde trabalha
À insónia sem margens ao vinho solitário
Duma pequena angústia
Escrevo todos os teus nomes
Puxo-os para mim tapo-me com eles
Na noite da surpresa
Noite feroz da surpresa
Noite do amor atacado de perto e conseguido
Alto e convulsivo
Noite dos amantes deslumbrados
Iluminados pelo demónio mais puro
Noite como uma punhalada ritual no invisível
Noite da vítima-triunfante

Escrevo o teu nome a meu favor e contra
Esta noite este murmúrio esta invenção atroz
A que chamam o dia-a-dia
Estas quatro minúsculas patas
Venenosas da angústia

Escrevo o teu nome cruel
Puro e definitivo.

Alexandre O'Neill
publicado por RAA às 23:33 | comentar | favorito
12
Out 08
12
Out 08

"Cada poema"

Cada poema
cada desenho
são os marinheiros que navegaram na minha cama
são uma revolução não só gritada na rua
são uma flor nascendo nos campos
e é o luar e a sua magia
e é a morte que não me quer
e é UMA MULHER
surpreendente como um marinheiro
luminosa como a palavra REVOLUÇÃO
tão natural como o malmequer
tão metafísica como o luar
tão desejada como a morte hoje
A MINHA MÃE
infinita e profunda
como o mar.

Artur do Cruzeiro Seixas
publicado por RAA às 05:00 | comentar | ver comentários (3) | favorito (1)
06
Out 08
06
Out 08

...

Árvores

O vento inebriado

O piar de certos pássaros

O jardim

O olhar que vai dar continuamente
Ao horizonte

As paredes vetustas

Rosas iluminando
O desmaiar lentíssimo
Da tarde

The Stone Bar
Pilton
19 de Agosto 97
Alberto de Lacerda
s#6
publicado por RAA às 02:20 | comentar | ver comentários (1) | favorito
02
Out 08
02
Out 08

E DE SÚBITO, EIS

E de súbito, eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas.
Raparigas cruzavam a Edgware Road inteira
perdendo-se pela Marylebone
com ares de fantasmas
e do meu lugar junto a King's Arms,
tendo por cima o cartaz
anunciando o concerto de Johnny Cash
e na mão a cerveja arrefecida,
eu podia vê-las passar e quase diriam que eram belas,
e contudo mais não eram que o epítome
de toda a geração
e passavam de novo
com livros acabados de comprar
em qualquer antiquário
e com perfumes baratos
ou roupas de cores mortas
ou grandes romances de amor
por dentro das cabeças fantásticas,
fazendo nascer em mim a danada ânsia do poema.
E escrevia então um que começava «e de
súbito eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas»
e o poema doía-me
como se milhões de agulhas me florissem no corpo,
já o sol fracamente iluminava a cidade
e Edgware Road ficava deserta,
cruzada apenas por fantasmas
com ares de raparigas
que teriam decerto sido belas
e que não eram agora mais que
o epítome de toda a morte,
e eu ficava a vê-los passar,
perdendo-se
para Marylebone ou Harrowby,
repetindo para que a noite me ouvisse
que
de súbito,
eis que aprendo a grande hegemonia de todas as coisas.

Fernando Cabrita
publicado por RAA às 14:54 | comentar | favorito