31
Ago 10

CONTRA A CORRENTE

Contra a corrente subimos os rios
à procura do lugar onde os sonhos
nascem. Contra a corrente rompemos
o véu e do anel de fogo já saímos.
Contra a corrente estamos sempre
quando os rios se formam em anéis de fogo
e véus de bruma surgem. Contra
a corrente chegamos a lugares onde o sonho
sobe. Contra a corrente,
outra vez, ainda, tentamos a sorte:
anular alguns círculos na água,
corpo-a-corpo com a morte,
p'ra desfazer o feitiço da serpente.

Eduardo Guerra Carneiro
publicado por RAA às 23:56 | comentar | ver comentários (2) | favorito

AÇÚCAR

expectativa: um pouco da angústia que o licorne
retém. os primeiros passos sobre um vasto átrio
onde se guardavam rosas mornas como lábios.
os mesmos que diziam: «é na alegria que se
constroem ninhos, aqueles que a vida vive
no conforto dos breves sentires. no amor a branda
safra das formigas, como o abraço com que me acolhes».
junto às rosas um açucareiro azul com casinhas doces
e licor dentro, magenta, alguns duendes dormem
sobre cogumelos coloridos.
os primeiros passos foram de açúcar

João Candeias
publicado por RAA às 19:36 | comentar | favorito

VIGÍLIA

o frio corta
em duas franjas
a paisagem
fiapos de azul
entrecortados
por serra
sono
cointreau
creme de café
cigarrilhas
o frio corta
a água queima
amor
tecendo o corpo creme
de café

inês, adriana, vera
revistas em quadrinhos
pôquer cama quer
historinhas, os meninos

murilo dorme
maurício recorta me re/cor
da eu pó menino tam
borilando a máquina

ulla corre
grita chispa
se mela remela
clama reclama
«perfuminho é meu
máquina é meu tinta
é meu é meu o mundo
é meu» vera
corre atrás o mundo
é de quem sabe amá-lo
por entre as frestas
e os fiapos de seu reino
profundo entre
cortado amor
tecido
serra
azul
sono
cointreau
creme de café
cigarrilhas

Ronaldo Werneck
publicado por RAA às 17:10 | comentar | favorito

...

La brise, les feuilles sur les branches,
et la plaine semée de grillons;

des platanes qui tendent les bras
pour atteindre la lune et les étoilles.

Et toi, toujours toi, toi seule,
la brise, les feuilles et les branches.

Toi, la lune et les étoiles,
et moi, les bras du platane.

J. P. Coutsocheras
publicado por RAA às 15:57 | comentar | favorito

...

Asfixia. Esta espera, este temer que acabe o que não pode acabar.
Casimiro de Brito
publicado por RAA às 15:19 | comentar | favorito

SOROR PÁLIDA

Bem haja inda esse raio solitário
da luz que, tanta, em mim resplandecia;
esse que -- único e triste alampadário --
as ruínas desta alma inda alumia;

e da piedosa visão, que ante o sacrário
da antiga fé, se ajoelhou, sombria,
e, pelas negras contas do rosário,
o rosário das lágrimas desfia...

Bem haja essa que, pálida e marmórea,
do amor extinto inda soluça o nome,
debulhando-lhe as sílabas ao vento;

e inda depõe no túmulo, onde a glória,
o sonho, a vida, a luz... tudo se some,
uma flor, uma frase, um pensamento.

Raimundo Correia
publicado por RAA às 14:25 | comentar | favorito

MORNA

As mesmas casas... as mesmas ruas...
o mesmo largo...
Só os rostos dos homens é que não são os mesmos
e, ébrios, os braços pendem, os homens tombam...

Som de violino escapando-se da casa térrea.
Cheiro a petróleo e a fumo.
Quêrèna treme os dedos sobre as cordas,
olhos vidrados, berra por mais gróg!

Titina sente-se frágil sob os braços de Armando.

A Morna traz ao corpo a lassidão e o sonho,
como a lua pondo sombras em coisas impossíveis...

António Nunes
publicado por RAA às 12:18 | comentar | favorito
31
Ago 10

CANÇÃO DA VIDA

Dias do passado,
Sonhos a findar,
Coração magoado
Que vai sossegar,
Fica a suspirar
De vos ter lembrado,
Sonhos a findar,
Dias do passado!

Passa o vento irado,
Já troveja o mar.
Coração magoado,
Tempo é de parar.
Deixá-los passar
Nesse vento irado,
Nos trovões do mar.

Nada há-de restar
Do tempo passado
Que te fez sangrar,
Coração magoado.
Quando clarear
Tudo está mudado.
É também mudar,
Coração magoado.

Nada há-de restar.

Alberto Osório de Castro
publicado por RAA às 11:09 | comentar | favorito
30
Ago 10

NÚMERO DOIS

Beethoven, concerto número dois para piano.
Com um canivete corta-me devagar por dentro
a parte da alma mais encostada à carne.
O prazer que a Camões também doía e as palavras
de depois de inventá-lo. O sol que brilha e ilumina
o verde das primaveras que nesta se repetem. Enu-
merar: como quem coloca cada som depois do outro
e parte para a solidão. Uma lâmina pequena corta-me
por dentro das próprias veias no meu corpo
desconhecido as mais pequenas fibras. E sei que
existem e é delas que se extrai
a revolta com que vou nascendo para
ver-me de pé enquanto reaprendo
a não esquecer que um dia finalmente
tudo terá passado. E esta aventura
de estar aqui hoje há-de perder-se
no tempo que consome tudo e nos consome
a nós o uso de nós mesmos. Afeiçoarei o meu
corpo cada dia mais definitivamente à imagem
da pequena morte que nos chega que toca
os olhos na retina os ouvidos na membrana
do tímpano e passa a circular no sangue com a
embriaguez. Assassínio lento de mim mesmo,
Claudio Arrau pianista chileno vai
pontuando o tactear da lâmina
no meu corpo e eu sentado contemplo as cores
dos objectos à minha volta e vou dando pelo
espanto de assistir à passagem de mim
mesmo pelo que me rodeia.

João Camilo
publicado por RAA às 23:40 | comentar | favorito
30
Ago 10

...

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.

Camões
publicado por RAA às 18:50 | comentar | favorito