29
Out 10

...

Rosa, em teu trono, pra os da Antiguidade
era um cálice com um bordo simples.
Mas para nós és a flor plena, inumerável,
o objecto inesgotável.

Pareces na opulência trajo sobre trajo
a envolver um corpo de nada mais que brilho;
mas cada pétala tua é a um tempo só
fuga e negação de toda a roupagem.

De há séculos teu perfume nos proclama
os seus nomes de maior doçura;
de súbito, paira no ar como uma glória.

No entanto, não sabemos nomear, adivinhamos...
E para ele passa a lembrança
que pedimos às horas invocáveis.

Rainer Maria Rilke

(Paulo Quintela)
publicado por RAA às 17:12 | comentar | favorito
29
Out 10

INTERFERÊNCIA

                                                                                                                                                                                                               A CECÍLIA MEIRELES

Quem veio bater à minha porta? quem?
Quem me fez abrir a janela e a noite morta?

O caminho estava deserto e o seu silêncio tinha horas.
Vento? Esta noite tem a paz e o sossego da morte.
Só eu e as estrelas sentíamos a solidão fantástica...

Nos ouvidos e na ansiedade guardei o rumor que me chamou,
As minhas mãos tiveram a carícia doutras mãos perdidas,
E uma companhia invisível acendeu uma luz na minha alma...

Alguém terá pensado em mim, longe?

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 15:40 | comentar | favorito
28
Out 10

SONETO

Dizem mil sabichões que, nesta vida,
Só pode quem tem ouro ser ditoso;
Que é pretender, sem ele, achar o gozo,
Ambição a que o senso não convida!

Assim julga quem vê na humana lida,
Cercado de galões, em trem custoso,
Qualquer nobre lapuz, louco vaidoso,
Que entre gente de bem não tem guarida:

Que esses fazem figura, eu não desminto:
A toda a parte vão, com seu cortejo,
Porque o mundo lhes dá lugar distinto:

Outras glórias têm mais, que eu não invejo;
Mas nunca sentirão prazer que eu sinto
Na risada que dou, se um deles vejo!

Faustino Xavier de Novais
publicado por RAA às 23:59 | comentar | favorito

A ESCADA DA VIDA

Encontrou-se a Caridade
Com o Orgulho, certo dia:
Subia o orgulho uma escada,
E a Caridade descia.

Ela humilde, ele arrogante,
No patamar dessa escada
Os dois, cruzando-se, viram
Uma rosinha pisada.

Emproado, o Orgulho, vendo-a,
Deu-lhe nova pisadela;
De joelhos, a Caridade
Deitou-se aos beijos a ela.

Mas nobres passos se ouviram
De som divino e tremendo:
O Orgulho seguiu subindo,
E a Caridade descendo...

E a voz de Deus, entretanto,
Disse, bramindo e sorrindo,
-- «Tu, que sobes, vais descendo!»
-- «Tu, que desces, vais subindo!»

Eugénio de Castro
publicado por RAA às 17:02 | comentar | favorito

A RECUSA DAS IMAGENS EVIDENTES

IV

Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
O astros que se olham de perfil.

Natália Correia
publicado por RAA às 14:30 | comentar | favorito

...

Monk compositor
não só para o jazz
de todas as Músicas
Monk na História da Música
em que páginas?

José Duarte
publicado por RAA às 12:01 | comentar | favorito
28
Out 10

PERDIÇÃO

                                                                                                                                                                                                        A MANUELA PORTO

Prazer de caminhar assim anónimo, sem rumo,
Sob a chuva miúda que põe reflexos na calçada,
Sentindo cair a noite outonal sobre a cidade...

As luzes dos carros que passam velozes,
As luzes das montras por que passam os vultos,
Fazem sombras secretas em quem vai e em quem vem...
É-se apenas um vulto que passa na noite que desce...
A nossa vida esquece e vai
Como uma folha dessas que o vento leva... -- para onde?...

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 11:06 | comentar | favorito
27
Out 10

FIGUEIRA COM PÁSSAROS

Nas traseiras da minha graça há uma
figueira      Ainda os figos não são figos
e já os pássaros
os pássaros entram nas verdes polpas com os seus
bicos
espetam as almas no doce amargo dos frutos
e depois queixam-se    A toutinegra não se cala    o melro
passa por cima    a pardalada prefere o arbusto do telhado
e as migalhas da vizinha velha que sabe o que fazer para
manter os diálogos
Porque há presença do Tejo no hálito dos pássaros
os figos hão-de ser melhores que os concorrentes orientais
os talvez de Alexandria    ou de qualquer oriente
Boa graça     bons figos
publicado por RAA às 19:14 | comentar | favorito

PIRÂMIDE INVERTIDA

Na individualidade triangular do ápice
Sujaremos com terra a púrpura pegajosa

Do lado branco pobre e básico
O índio e a febre amarela
O negro e a festa trágica

Em breve trajetória dialética
Mudará o artista paralelas intocáveis
Empurrando as linhas-retas-pontilhadas
Tingindo a santa trindade mística

Pois o triângulo é pedra e lápide
Do tumulto do sustento insuportável
Desses faraós reclassificados

Ricardo G. Ramos
publicado por RAA às 16:48 | comentar | favorito
27
Out 10

GUINCHO

O Sol põe-se
sobre o lento bater das ondas,
e despede-se
do meu corpo de areia.
publicado por RAA às 15:32 | comentar | favorito