30
Nov 10

VIRGEM

Sobe, suave, solene coluna de fumo branco...

És vulto que se evapora,
És toda a alma que chora
Sem lágrimas, sem motivo,
Sem uma queixa
Aparente.
           Vivo!
           Em mim
           Existe
           Sòmente
           Uma tristeza
           Sem fim
           Que nem me deixa
           Ser triste
           Aos olhos da outra gente.

           Imagem
           Sempre em viagem,
           Minha impalpável riqueza.

Sobe, suave, solene coluna de fumo branco...

Lisboa,
1927


Gil-Vaz
publicado por RAA às 23:59 | comentar | favorito
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ASTROLÁBIO

Guardei o recibo, que não serve para nada.
Dados impessoais: o nosso subtotal foi de 6,35
-- pediste uma água mineral, um café
e uma sandes de ovo (em que não tocaste);
pagámos caro por estarmos ali os dois,
na cafetaria do aeroporto com uma hora inteira
só para dizer uma palavra. Tudo
processado por computador, IVA incluído.
Uma operação que teve início precisamente
às 04.55 da madrugada. Agora
temos muito tempo para nos contentarmos
por já não termos que disputar as contas,
tu pagas os teus cafés, e eu sem ti
passo bem sem café.

Diogo Vaz Pinto
publicado por RAA às 18:15 | comentar | favorito

RECREIO

Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 17:12 | comentar | favorito

...

Fica o passar do tempo na paisagem
-- fica numa folha que passa
e seca
tomba...

Fica numa sombra
a completar a imagem
da eternidade.

António de Navarro
publicado por RAA às 14:41 | comentar | favorito

JANGADA

Vai o marinheiro pôr no mar
a mala grande de herói
que embarca todos os dias
e segue na derrota sem velas
nem casa de navegação.

Vai fechando os olhos aos anos desertos
esmigalhando nas mãos
as horas que lhe envelhecem a vigília
e como criança no encantamento de uma fantasia
dá a direcção de mar largo
ao pauzinho que põe na água.

Olhos postos na hora grande
duma partida que inventa mastros cabos,
companheiros de viagem de várias falas,
qual virgem que espera até às rugas
o momento do amor...
ou figura antiga na contemplação mística
dum sonho sonhado
(o mar porta aberta dum fruto quase proibido)
inclina-se com a brisa e sonha
que não está sonhando!

Teobaldo Virgínio
publicado por RAA às 12:49 | comentar | favorito
30
Nov 10

FLASH DE JOHN COLTRANE

para Rão Kyao

a ouvir Stardust de John Coltrane
o meu destino é este debruçado na
pirâmide com o coração aberto em quatro
de maneira esfíngica no deserto sempre
que outro lugar não há à mercê de ser
livre dono da deriva do barco

7-10-77

António Barahona
publicado por RAA às 11:37 | comentar | favorito
29
Nov 10

O GATO

O meu não come ratos, não gosta. Se apanha algum, é para brincar com ele.
Quando brincou tudo, poupa-lhe a vida, e vai sonhar noutra parte, o inocente,
          [sentado no caracol do seu rabo, a cabeça fechada como um punho.
Mas, por causa das garras, o rato morreu.

Jules Renard 

(Jorge de Sena)
publicado por RAA às 23:41 | comentar | favorito

O MENINO DE SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
-- Duas, de lado a lado --,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

Fernando Pessoa
publicado por RAA às 16:46 | comentar | favorito

ALARIDO

E veio a noite do alarido.

A noite clara, a noite fria,
com perfurados calafrios.

A noite com punhais erguidos
e olhos devassando perigos.

A noite cava, com ladridos
de cães atiçados. E espias.

A noite com tremores lívidos
e com membros estarrecidos
diante das ovelhas suicidas.

A noite de mármore e níquel
despedaçando-se em tinidos
no cristal violento das criptas.

Montanhas de ferro em vigília,
longas árvores comprimidas
e astros de fogo em carne viva

pasmaram de tanto alarido.

Henriqueta Lisboa
publicado por RAA às 14:47 | comentar | favorito
29
Nov 10

BUGANVÍLIA

Branca a buganvília explode
no odiado muro em frente

à volta a vida berra crente
e o negro sangue estanca

vermelha a buganvília
rompe o muro da frente

José Luandino Vieira
publicado por RAA às 12:52 | comentar | favorito