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Abr 11
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Abr 11

Primeiros Poemas / As Mãos e os Frutos / Os Amantes sem Dinheiro

autor: Eugénio de Andrade (Póvoa da Atalaia, Fundão, 19.I.1923 -- Porto, 13.VI.2005)
título: Primeiros Poemas / As Mãos e os Frutos / Os Amantes sem Dinheiro
colecção: «Obra de Eugénio de Andrade» #1
edição: 1.ª conjunta; 8.ª, 14.ª e 13.ª, respectivamente
editora: Fundação Eugénio de Andrade
local: Porto
ano: 1993
págs. 104
dimensões: 20,1x12,8x0,7 cm. (brochado)
capa: Armando Alves
impressão: Helvética -- Artes Gráficas, Gondomar
obs.: desenho de Ângelo de Sousa; retrato do autor por Júlio Pomar, 1953; nas badanas, excertos de apreciações de Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, António Ramos Rosa e Eduardo Lourenço.
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29
Abr 11

ANTES QUE

antes a violência da queda
antes a faca - paixão cega
antes a vida que se entrega
antes a raiva que se eleva
antes a verdade mais severa
antes a existência precária
                                       
                                            que a inércia do medo
                                            que a vida posta em sossego
                                            que a mendicância de arrego
                                            que a mágoa em segredo
                                            que a armação de um enredo
                                            que a rotina nos retorcendo

publicado por RAA às 23:39 | comentar | favorito

O PRIMEIRO HOMEM

Era um homem viciado na luz.
As mulheres que diziam "o homem, o homem"
levantavam-se ou levantavam os olhos
ofuscados e repetiam o homem
e apontavam confusas para dentro do olhar
do homem.
O homem achava estranho que elas
dissessem apenas isso: "o homem",
e um dia disfarçou-se de mulher
para se esconder da luz.

Da primeira solidão do homem
ninguém falou.
Ninguém repetiu
a primeira solidão do homem.

Filipa Leal
publicado por RAA às 23:20 | comentar | favorito
29
Abr 11

JAZZ

O jazz
aquece a noite
generoso sopro
substitui a escuridão.

Charlie Parker
passeia
invisível pela sala
se instala
no lado avesso da razão.

A raça humana
cartesiana
sai em busca de outros tons.

Ricardo Mainieri
publicado por RAA às 11:57 | comentar | favorito
28
Abr 11

...

Quem
me concede
os anjos
que as nuvens imitam?

Oiço vozes
mas é inútil

Cada pancada do meu coração
não repercute
no vosso
            alado
                    lado

O meu grito
não penetra a noite

e só encontra
o eco
          de nenhum
                           desejo

Ana Hatherly
publicado por RAA às 21:07 | comentar | favorito
28
Abr 11

VERÃO SEM MITOS, COMO CONSUMIR

Verão sem mitos, como consumir
teus frutos tão sem sol neste pomar?
Ai de nós nesta terra sem florir!
Outubro nos escorre devagar...
Nos campos, sem besouros a zumbir,
pararam todos já de trabalhar.
Os motes que glosávamos a rir
novembro, em tristes voltas vem glosar.
E tu, sazão, que este País fruía,
quem te ofuscou do Nume o brilho louro
arder nos faz em labareda fria...
Eis perdida no caos a Idade do Ouro!
E a crer em quanta crença e profecia,
este tempo será mais duradouro...

Jayro José Xavier
publicado por RAA às 11:48 | comentar | favorito
27
Abr 11

VARIANTE POUR UNE FIN

On vient de sonner à la porte
Personne
Qu'est-ce que je me veux
De toute façon ce fantôme
aurait maintenant
des cheveux
blancs
comme
moi
On sonne on sonne
Sans doute ne sait-il plus quoi
faire de ses dix doigts les mains mortes

Paul Gilson
publicado por RAA às 16:43 | comentar | favorito

MUNDO DE AVENTURAS

Uma pequena aldeia na planície arménia,
nevoeiro matinal no porto de Dieppe.
O silvar agudo nos cimos dos Cárpatos,
um castelo solitário num lago escocês.
Um junco chinês no mar do Japão,
um trilho de camelos na Rota da Seda.
Um catre vazio no mosteiro da Arrábida,
uma via romana na serra do Gerês.
Uma mesa de cozinha e odores de Outono,
um eucaliptal onde brinco com o Avô.
O último número da revista tão esperada,
despojos da infância que se me acabou.
Sintra, 21 de Março de 2001
publicado por RAA às 11:42 | comentar | favorito
27
Abr 11

CARREGADORES

A pena que me dá ver essa gente
Com sacos sobre os ombros, carregadíssima!...
Às vezes é meio-dia, o sol tão quente,
E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!...

À porta dos monhés, humildemente,
Mal a manhã desponta a vir suavíssima,
Vestido rotas sacas, tristemente
Lá vão 'spreitando a carga pesadíssima...

Quantos, velhinhos já, avós talvez,
Dez vezes, vinte vezes, lés a lés
Num dia só percorrem a cidade!

Ó negros! Que penoso é viver
A vida inteira aos fardos de quem quer
E na velhice ao pão da caridade...

Rui de Noronha
publicado por RAA às 11:06 | comentar | favorito
26
Abr 11
26
Abr 11

HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o longe, e o sul sidéreo
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa de longínqua costa --
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe e abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte --
Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa
publicado por RAA às 17:44 | comentar | ver comentários (2) | favorito