03
Jun 11
03
Jun 11

CONFISSÃO

No silêncio pesado do caminho,
ouviu-se um passo, cadenciado
na firmeza das horas decisivas.

A sentinela bradou:
                              -- Quem vem lá?...

O Homem podia ter respondido
qualquer coisa parecida
com: «gente de paz»...

Mas não. Onde a paz,
se no seu peito ardiam agonias
enraivadas,
se nos seus olhos boiavam
visões de fogo e de morte,
e as suas mãos,
(ó belas, generosas mãos!)
vinham ainda tintas
dos sangue dos camaradas?...
Não trocou portanto as falas.

Respondeu simplemente, sombriamente:
                   -- EU!

E a sentinela, varou-o com três balas.

Lisboa, 1949 (Maio)

Alda Lara
publicado por RAA às 12:47 | comentar | favorito
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02
Jun 11

LÍRICA PARA UMA AVE

Num céu de chumbo e baionetas
caladas,
sobre uma floresta de sono
e demência,
tonta, esvoaça perdida
uma ave sangrenta.
Na turva e opressa manhã
se anuncia a cólera
do tempo.

Na hora
da aurora,
gemem ventos,
fluem surdos rios.

Cerra os olhos,
cala na garganta
a voz,
acorda audível
o pensamento:

No escuro cerne da floresta,
com sorrisos dependurados à entrada,
degola-se uma ave.
Por enquanto mais nada, senão
o torvo tinir dos talheres
no banquete da morte impossível.

Rui Knopfli
publicado por RAA às 23:29 | comentar | favorito

O PARADOXO DO VIAJANTE

Penso nos lugares aonde não mais voltarei:
não para dizer que neles se encerrou
o que deles ou através deles eu poderia ter sido.
Apenas para lembrar
que nunca lhes poderei dizer adeus.

Luís Filipe Castro Mendes
publicado por RAA às 14:56 | comentar | favorito
02
Jun 11

JÚBILO

Há um presságio de júbilo
à sua beira, um tecido
na trama do contrário

Uma rosa de mar
na sua esteira, uma espécie
de ardil em seu afago

Um modo
Um todo
Uma maneira

De misturar
o doce
e o amargo

Maria Teresa Horta
publicado por RAA às 12:24 | comentar | favorito
01
Jun 11

O FUMO

Do meu quarto, que dá sobre uns quintais,
Descubro todo o bairro; e, muita vez,
Vejo, evolar-se o fumo em espirais
                    Das negras chaminés.

Quando vou à janela, ao Sol poente,
Horas em Junho de acender os lares,
Meus olhos vão seguindo longamente
                    O fumo pelos ares.

E penso ver formarem-se na vasta
Imensidade, esplêndidas imagens;
Até que o fumo pelo Azul se gasta
                    Nas mais altas viagens.

Todo este quadro é tão banal, que então
Chego a rir-me de mim, do que resumo
Na minha eterna e doce aspiração...
                    Que se assemelha ao fumo.

António Fogaça
publicado por RAA às 14:44 | comentar | ver comentários (2) | favorito
01
Jun 11

SONETO DO DESMANTELO AZUL

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdido de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

Carlos Pena Filho
publicado por RAA às 11:47 | comentar | favorito