28
Jul 11
28
Jul 11

...

As tuas coxas de firme e elástico contorno
E de doces energias,
Que cálice de segredos rompe a sua dureza vertical?
Que sombra de apertadas e nocturnas pestanas
Lhes empresta essa agilidade comprometida?

Peixe que só tem a água do amor.

Joaquim Gomes Mota
publicado por RAA às 03:24 | comentar | favorito
26
Jul 11
26
Jul 11

ABRIL

Assalto
ao Palácio do Inverno
para de vez
implantar
a Primavera.

João Pedro Mésseder
publicado por RAA às 23:58 | comentar | favorito
25
Jul 11
25
Jul 11

POÉTICA

Estes quantos traços que se parecem com a sombra
(às mãos devemos também a solidão mais implacável)
talvez nem mereçam essa forma de lentidão: a leitura
escrevi-os num jardim onde patos grasnam ao frio
e folhas se despenham atrás do vento

Sobre a terra sem nenhum rumor
um verso é sempre tão pouco
em redor do que se pode observar
tenho medo pois de repente
a tua respiração ficou demasiado perto
da essência instável, dissonante

E isso é tudo o que nos resta

José Tolentino Mendonça
publicado por RAA às 23:44 | comentar | favorito
24
Jul 11
24
Jul 11

...

Um homem caído no seu corpo
ainda vai cair um pouco mais
e morder vicioso o seu pó
como se o dom do pó lhe desse paz,
não a paz de homem, que já não é,
mas um resto de migalhas e sílabas
que têm de seu a pureza extrema
tão comum a homens como a bichos
e aos outros habitantes deste mundo
caídos num corpo mais disciplinado
por mais que seja leve ou obscuro
o que não sabemos estar do outro lado _____

Casimiro de Brito
publicado por RAA às 23:53 | comentar | favorito
23
Jul 11
23
Jul 11

GEOGRAFIA

Quem sobe há-de descer e quem desce há-de subir. Não se sobe eternamente, nem se desce eternamente -- porque o mundo é redondo.

António Madeira
[Branquinho da Fonseca]
publicado por RAA às 22:59 | comentar | favorito
22
Jul 11
22
Jul 11

UM FOGO O PERCORRE

No ângulo raso do rosto
a palavra se esmaga
violenta

No ângulo recto da raiva
a lâmina se quebra
imprevista

No rumor da maré
o corpo todo se altera
dolente

O sangue não pára nos lábios
correndo pelos canais
amargo

A memória ainda se repete
no cristal dos olhos
em redor

O amor de súbito
se torna ácido agreste
de ponta a ponta fascinado
Um fogo o percorre
intensamente

José Jorge Letria
publicado por RAA às 23:23 | comentar | favorito
21
Jul 11
21
Jul 11

DOMICÍLIO VIGIADO

amar é difícil (risco um fósforo
o fogo estala monstruosamente)
requer muito esforço continuado de abstracção
como andar de bicicleta
já tentei sangrar os dedos com uma faca
as ilusões desfeitas
correm as lágrimas ao rio na infância do mundo
bobby sands e o seu magnífico esqueleto didáctico
a malta no soweto a dançar e a rir
o sentido do tempo.
que é ser-se uma casa devoluta e indisponível?
a insónia macerada de pés nus
em tábuas velhas e infectas
abjecta circunvagação de jornais livros e aguardente
amar é difícil -- quod erat demonstrandum
lá fora devagar a chuva cai
(o cigarro arde as têmporas explodem)
e sacode-me a face como um látego.

João Paulo Monteiro
(Ângelo Novo)
publicado por RAA às 19:14 | comentar | favorito
20
Jul 11
20
Jul 11

A MORTE

A alma escala as montanhas do frio e vai
abandonando o corpo,
do qual foi chama;
quando atinge o cume
contempla um céu sereno, benigno
onde se irá acolher;

ou navega junto ao círculo polar
até chegar a uma baía
de água límpida e quente?

Na escuridão da caverna
um medo vigia os nossos actos,
medo de que a vida seja apenas isto --
sombras projectadas na parede,
dor pelos caminhos,
até findar um dia, no sem sentido
de um corpo perecível.

Necessidade de saber, derradeiro
e redentor o desejo
ao acender no peito a ilusão
da vitória da vida
sobre o nada.

Na inútil função consoladora da poesia.

Jorge Gomes Miranda
publicado por RAA às 22:58 | comentar | ver comentários (2) | favorito
19
Jul 11
19
Jul 11

ORDEM

     Anda, disse aquele a quem chamavam tio, ajudar-me no vidrão. E tu, acrescentou, vai pôr a mesa. Foram. Deixando o Scarlatti para trás.

     Adormece a luz, pesada, sobre as minhas crianças obedientes. Veraneiam, ele e elas, numa cidade onde há muito se deformam os burgueses.

     Nada de mais, apenas um tédio conveniente -- segreda uma voz de cinza.

     Nem o Scarlatti se revolta?

Gent, 1997

João Pedro Mésseder
publicado por RAA às 23:59 | comentar | favorito
18
Jul 11
18
Jul 11

A VOZ SOLITÁRIA DO HOMEM

Há palavras que escrevemos mais depressa
o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhe é desconhecido
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono

José Tolentino Mendonça
publicado por RAA às 23:42 | comentar | favorito