28
Fev 12
28
Fev 12

MOTHERWELL (ELEGY FOT THE SPANISH REPUBLIC 108)

Carvão incandescente

e mineiros de um frio negro, 

vítimas da febre geral

e da privação de proteínas

 

-- um quarto onde cheira a cebola,

um gesto que se desconhece,

a partilha do único ficando azeda.

 

Foi uma lama que a geada inteiriçou,

os animais de carga que sobreviveram,

pendurada na gentileza

 

do seu corpo a roupa

interior de um homem destruído.

 

José Alberto Oliveira

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27
Fev 12

PARTIR!...

Eu vou-me embora para além do Tejo,

não posso mais ficar!

 

Já sei de cor os passos de cada dia,

na boca as mesmas palavras

batidas nos meus ouvidos...

-- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...

Abro os olhos e não vejo

já não ando, já não oiço...

Não posso mais...

Grita-me a Vida de longe

e eu vou-me embora para além do Tejo.

 

Passa a ave no céu bebendo azul e diz:    Vem!

O vento envolve-me numa carícia,

envolve-me e murmura: -- Vem!

As ondas estalam nas praias e vão mar fora,

as mãos de espuma a prender-me os sentidos

chamam no fundo dos meus olhos: -- Vem!

 

-- Camaradas, eu vou, esperai um pouco...

Ai, mas a vida nunca espera por ninguém...

E a noite chega vingadora;

o vento rasga-me o fato,

as ondas molham-me a carne

e a ave pia misticamente no ar;

abro os olhos e não vejo,

já não ando, já não oiço

-- e fico, desgraçado de ficar!...

 

Manuel da Fonseca

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27
Fev 12

OS MEDRONHEIROS

Nos braços verdes, nus,

pousou um bando,

verde, leve,

d'asas glaucas

anunciando

o ocaso do inverno,

Cavalgada de Niebelungos que no longe se perde.

 

No estio,

o arnês,

do sol

se desfez

num chuveiro 

d'oiro mole;

em cada gomo

-- um bago d'oiro

a tentar-me!

 

Quem me dera,

medronheiro,

como tu,

dar um fruto

que pudesse embriagar-me!

 

Escuto,

das seivas o corpo ébrio,

todo nu,

bailando no silêncio

rumoroso da floresta,

onde o vento canta

-- a eterna canção da gesta.

 

Os medronhos,

um a um,

vão caindo,

terminou o festim.

Nas taça, o vinho,

já tem sono,

já tem sonhos de mim.

 

E o outono,

pelo oiro do caminho,

vindo,

vem bailando

na dança-dos-véus,

dança das névoas.

 

Terminou o festim.

Principia a saturnália das folhas mortas.

 

António de Navarro

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26
Fev 12
26
Fev 12

Orfeu Rebelde

autor: Miguel Torga
título: Orfeu rebelde
edição: 3.ª (1.ª, 1958)
ediçâo: do autor
local: Coimbra
ano: 1992
págs.: 85
dimensões: 19,5x14x0,5 cm. (brochado)
impressão: G.C. - Gráfica de Coimbra
tiragem: 5000
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24
Fev 12
24
Fev 12

BOAS NOITES

Estava uma lavadeira

A lavar numa ribeira

Quando chega um caçador:

 

-- Boas tardes, lavadeira!

 

-- Boas tardes, caçador!

 

-- Sumiu-se-me a perdigueira

Ali naquela ladeira;

Não me fazeis o favor

De me dizer se a brejeira

Passou aqui a ribeira?

 

-- Olhai que, dessa maneira,

Até um dia, senhor,

Perdereis a caladeira,

Que ainda é perda maior.

 

-- Que me importa, lavadeira!

Aqui na minha algibeira

Trago dobrado valor...

Assim eu fora senhor

De levar a vida inteira

Só a ver o meu amor

Lavar roupa na ribeira!

 

-- Talvez que fosse melhor...

Ver coser a costureira!

Vir de ladeira em ladeira

Apanhar esta canseira,

E tudo só por amor

De ver uma lavadeira

Lavar roupa na ribeira...

É escusado, senhor!

 

-- Boas noites,... lavadeira!

 

-- Boas noites, caçador!...

 

João de Deus

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23
Fev 12

HOMENAGEM A CAMÕES

I

 

Através do imitado sentimento,

Ao ler-te, quanta vez tenho sentido

Como é muito maior o amor vivido

Em ato não, mas só em pensamento.

 

Então invento o que amo e amo o que invento,

Em coisas sem razão tão comovido

Que o ar me falta e o respiro comprimido

Não sei se dá, não sei se tira o alento...

 

Sabor de amor é esse alto respirar,

Essa angústia em suspiros mal dispersos.

Em amor, que importância tem o ar,

 

O ar, cheio de fantásticas ações!

Assim, aquele que imitar teus versos,

Primeiro imite o teu amor, Camões!

 

Dante Milano

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23
Fev 12

"Tenho os meus amigos"

Tenho os meus amigos

na minha solidão;

e quando estou com eles

que longe que estão!

 

Antonio Machado

 

(Jorge de Sena)

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22
Fev 12

"Pour veiner de son front la pâleur délicate"

Pour veiner de son front la pâleur délicate,

Le Japon a donné son plus limpide azur;

La blanche porcelaine est d'un blanc bien moins pur

Que son col transparent et ses tempes d'agate.

 

Dans sa prunelle humide un doux rayon éclate;

Le chant du rossignol près de sa voix est dur,

Et, quand elle se lève à notre ciel obscur,

On dirait de la lune en sa robe d'ouate.

 

Ses yeux d'argent bruni roullent moelleusement;

Le caprice a taillé son petit nez charmant;

Sa bouche a des rougeurs de pêche et de framboise;

 

Ses mouvemments sont pleins d'une grâce chinoise,

Et près d'elle on respire au tour de sa santé

Quelque chose de doux comme l'odeur du thé. 

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22
Fev 12

INFERNO

Lasciate ogni speranza voi ch'entrate

 

Aqui a asa não sai do casulo, o azul

não sai da treva, a terra

não semeia, o sêmen

não sai do escroto, o esgoto

não corre, não jorra

a fonte, a ponte

devolve ao mesmo lado, o galo

cala, não canta a sereia, a ave

não gorjeia, o joio

devora o trigo, o verbo envenena

o mito, o vento

não acena o lenço, o tempo

não passa mais, adia,

a paz entedia, pára

o mar, sem maremoto,

como uma foto, a vida,

sem saída, aqui,

se apaga a lua, acaba,

e continua

 

Arnaldo Antunes

publicado por RAA às 12:35 | comentar | favorito
21
Fev 12
21
Fev 12

TARDE

Tão tarde apareceste

na minha solidão!

Onde estiveste

quando esperei por ti?... Talvez não esperasse, talvez não!

Nunca te adivinhei. Por isso hoje não tenho um só amor

que me bendiga.

Sou como aquelas árvores sem flor,

que mal estendem os seus braços, desoladas,

aos caminhantes cheios de fadiga;

ou como aquelas árvores de sombra amiga,

mas que florescem longe das estradas.

 

Não me dês teu afecto. Bem sei

que não mereço, porque não te esperei.

Põe nos meus olhos teu olhar.

Não sentes medo?

Vou dizer-te -- um terrível segredo:

Não sei amar!

Eu sou como o estouvado jardineiro

que ao vento arremessou as sementes formosas

das violetas, dos lírios e das rosas,

e nunca foi capaz de florir um canteiro...

Sou como o dementado mercador, que, um dia,

abriu a sua loja,

e da porta chamando toda a gente que passa,

dos bens que possuía

se despoja,

dando tudo de graça...

 

Minha vida, meu sonho, minha alma -- tudo o que eu tinha, dei.

Gastei o coração, que eu supusera infindo,

no amor em que, baldadamente, a tantas outras eu amei...

E quem és tu que vens agora?... Já te reconheci:

és aquela que nunca deveria ter vindo,

pois já não tenho nada

para ti.

 

Deixa-me só no teu regaço repousar

minha fronte cansada,

para chorar...

 

Amorim de Carvalho 

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