31
Mai 12
31
Mai 12

POEMA DE SETE FACES

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

 

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

 

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

 

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

 

Meu Deus, porque me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

 

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, nãoseria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

 

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

 

Carlos Drummond de Andrade

publicado por RAA às 01:47 | comentar | favorito
28
Mai 12
28
Mai 12

"Suspiros inflamados, que cantais"

Suspiros inflamados, que cantais

A tristeza com que eu vivi tão ledo,

Eu mouro e não vos levo, porque hei medo

Que ao passar do Lete vos percais.

 

Escritos para sempre já ficais

Onde vos mostrarão todos co dedo,

Como exemplo de males; que eu concedo

Que para aviso de outros estejais.

 

Em quem, pois, virdes falsas esperanças

De Amor e da Fortuna, cujos danos

Alguns terão por bem-aventuranças,

 

Dizei-lhe que os servistes muitos anos,

E que em Fortuna tudo são mudanças,

E que em Amor não há senão enganos.

 

Luís de Camões

publicado por RAA às 02:53 | comentar | favorito
26
Mai 12
26
Mai 12

POEMA

A rapariga na ponte,
com a saia plissada,
uma blusa de cretone
e o cabelo apanhado
em carrapito. A família
já se sentou para jantar,
era uma noite de inverno,
cúmplice enérgica da
cidade -- autocarros vazios

empenhavam-se em regressar,
com motorista agoniados.

Por trás da porta da sala
há uma cristaleira com garrafas
de licor. Não têm rótulo
e ela vai chegar tarde.
Também isso pouco importa.
Não há lareira que lhe seque
a roupa, circula
um veneno, um nevoeiro,
uma névoa torcida e hoje
é o dia dos seus anos.

José Alberto Oliveira
publicado por RAA às 02:47 | comentar | favorito
24
Mai 12

EXISTÊNCIA

EXISTÊNCIA


Anne voltou da escola

a dizer que na escola dizem que

Deus não existe. Eu disse-lhe

tu não deves acreditar nisso.


Bem, então Deus existe?

Não para os que não crêem,

disse-lhe, mas para os demais Deus

existe. Não é isso estranho?, disse Anne.


Sim, disse-lhe, é estranho.

É possível, disse Anne, não

existir e existir?

Sim, disse-lhe, para Deus é possível.



Videre, 1982

 

Ernst Ovril

 

publicado por RAA às 15:15 | comentar | favorito
24
Mai 12

RESPONDE AO QUE DISSE HAS DAMAS QUE SOSPIRAUAM POR PERAS, & MELÃO, & FIGOS [O CUYDAR, & SOSPIRAR]

   Sofpyrar por fygos, peras,

por melão, bolo folhado,

nam he sospirar deueras,

q doutras fruytas mais feras

vem o fofpirar formado.

Falem' do fofpirar

que vyr de payxões sentenda,

que o al mays he cuydar

aa vontade do paadar

peraas coufas damerenda.

 

Fernão da Silveira

publicado por RAA às 12:56 | comentar | favorito
23
Mai 12
23
Mai 12

"Cai a noite."

Cai a noite.

     Sob o manto da sombra

     O braseiro é um bálsamo

     Que sara o aguilhoar

     Dos escorpiões do frio.

     Ardente, talhou as mantas,

     O nosso cálido abrigo

     Onde frio se não consente.

 

O incêndio na lareira

(Nós olhando fascinados

E a grande taça de vinho

Que vai passando em redor)

Mal nos permite a intimidade

E logo nos afasta.

 

É uma mãe,

     Que umas vezes nos amamenta

     E outra nos retira o peito.

 

Ibn Sara

(Adalberto Alves)

publicado por RAA às 14:25 | comentar | favorito
22
Mai 12
22
Mai 12

Motorizada no poço da morte.

Poesia à superfície.

 

Luís Serra

publicado por RAA às 10:05 | comentar | favorito
21
Mai 12
21
Mai 12

HOMO

Penso. Verbo, sou uma voz sonora...

Abalo os mundos, pelo céu alastro...

Asa e fogo. Crepito e subo. Um astro

A arder, errante, pela noite fora.

 

Transcendo o infinito. Zoroastro,

Jesus ou Buda a procurar a aurora

Do dia eterno, enquanto a dor clamora:

-- «Deus passou por aqui: segue-lhe o rastro...»

 

O soluço imortal! O grito amargo

Vare embora os abismos, não me assombra

E aremesso-me além! mais alto! e ao largo!

 

E Deus? Como atingi-lo? Dilacero

A sombra onde se oculta e -- ó desespero,

Ó voo inútil -- não se acaba a sombra...

 

Cândido Guerreiro

publicado por RAA às 18:12 | comentar | favorito
20
Mai 12
20
Mai 12

XVII

     Mário de Andrade, intransigente pacifista, internacionalista amador, comunica aos camaradas que bem contra-vontade, apesar da simpatia dele por todos os homens da terra, dos seus ideais de confraternização universal, é atualmente soldado da República, defensor interino do Brasil.

 

E marcho tempestuoso noturno

Minha alma cidade das greves sangrentas,

Inferno fogo INFERNO em meu peito,

Insolências, blasfêmias, bocagens na língua.

 

Meus olhos navalhando a vida detestada.

 

A vista renasce na manhã bonita.

Paulicéia lá em baixo epiderme áspera

Ambarizada pelo sol vigoroso,

Com o sangue do trabalho correndo nas veias das ruas.

    Fumaça bandeirinha.

    Torres. 

    Cheiros.

    Barulhos

    E fábricas...

    Naquela casa mora,

    Mora, ponhamos: Guaraciaba...

    A dos cabelos fogaréu!...

    Os bondes meus amigos íntimos

    Que diariamente me acompanham pro trabalho...

    Minha casa...

    Tudo caiado de novo!

   É tão grande a manhã!

  É tão bom respirar!

É tão gostoso gostar da vida!

 

A própria dor é uma felicidade...

 

Mário de Andrade

publicado por RAA às 23:40 | comentar | favorito
08
Mai 12
08
Mai 12

"Os antigos eram jovens, e nós"

Os antigos eram jovens, e nós,

disse Bacon num lúcido momento,

somos velhos, embrulhados em

constante movimento. Hoje podia

ter vinte anos, um corpo diferente

capaz de reflectir

o sol, que além das nuvens brilha;

 

saberia, com arte de palavras,

dizer, do céu, os nomes mais completos;

de barbas brancas visitando asilos

os nossos filhos nos dariam fama.

E ainda assim alguma

pequena coisa perderia: o céu, talvez,

na sua cor mais fria;

 

manhãs de temporal, quando distantes

relâmpagos azuis cobrem a terra;

o cheiro a chuva, o sabor de alguns frutos;

estória por contar, livros por ler;

a sábia opinião do chanceler;

e sobretudo, no teu rosto, o véu

do antigo amor chamado juventude.

 

António Franco Alexandre

publicado por RAA às 16:55 | comentar | favorito