28
Jun 12
28
Jun 12

A ROSA IRREVELADA

Correi o mundo e procurai palavras novas para um poema.

Dos oceanos trazei nomes de peixes e remotas ilhas,

tranças de virgens, seios afogados,

mas

antes de tudo palavras para um poema.

 

Caminhai nas trevas em busca de uma rosa.

Colhei nos cardos a flor menosprezada.

Buscai no mar os líquenes, as esponjas,

trazei convosco pérolas,

peixes negros e plantas submarinas.

 

Trazei a náufraga de olhos devorados

por gaivotas. A náufraga de seios como luas

entre ciprestes de algas. A náufraga

de coxas como praias

onde o desejo espuma e desfalece.

 

Não procureis anelos e ternura

nem um pássaro de canto engaiolado.

Quero-vos noite escura, corpo escuro

de mulher em silêncio, rosa inviolável.

 

Trazei da noite palavras para um poema.

A irrevelada morte para um poema.

 

Domingos Carvalho da Silva

publicado por RAA às 17:09 | comentar | favorito
27
Jun 12
27
Jun 12

LES CONQUÉRANTS

Comme un vol de gerfauts hors du charnier natal,

Fatigués de porter leurs misères hautaines,

De Palos de Moguer, routiers et capitaines

Partaient, ivres d'un rêve heroïque et brutal.

 

Ils allaient conquérir le fabuleux métal

Que Cipango mûrit dans ses mines lointaines,

Et les vents alizées inclinaient leurs antennes

Aux bords mistérieux du  monde occidental.

 

Chaque soir, espérant les landemains épiques,

L'azur phosphorescent de la mer des Tropiques

Enchantaient leur sommeil d'un mirage doré;

 

Ou, penchés à l'avant des blanches caravelles,

Ils regardaient monter en un ciel ignoré

Du fond de l'Océan des étoiles nouvelles.

 

José Maria de Heredia

publicado por RAA às 15:45 | comentar | favorito
26
Jun 12
26
Jun 12

ACODE A NOITE...

Acode a noite, o dia se apagando.

A cidade impõe-se outra face.

O mistério, agora, é lírico e é brando.

se a mão lhe toca, abre-se.

 

É noite funda. Dos bas-fond diversos

o som que vinha, lúbrico, morreu...

 

-- É Deus, que assiste à dor de fazer versos.

Foi a minh'alma que se mereceu.

 

António Luís Moita

publicado por RAA às 14:33 | comentar | favorito
25
Jun 12
25
Jun 12

CLAUSTRO

     Apago a luz. De que me vale? Há luzes na rua, há luas no céu, há quanto não são os outros e quanto são os outros -- e sou Eu.

     Na parede branca abriu-se a grade duma prisão: o caixilho da janela desenhado pela luz que vem de fora.

     Volto a acender a luz. E penso: o melhor é não apagar as luzes, não desviar os olhos: olhar e sorrir com mágoa sempre igual e agradecimento sempre maior.

 

António Madeira

(Branquinho da Fonseca)

publicado por RAA às 01:59 | comentar | favorito
22
Jun 12
22
Jun 12

NA GÁVEA

Enquanto o vento

sopra contra a flor caduca

da pedra, um som mais belo que o som das

fontes nos seduz a invocar do cubo de treva

nosso de cada noite que nos dê -- não outro dia,

chuva nos cabelos, lampejos do sublime entre pilotis

de azul e abril, mas apenas a vertigem do ato,

o vermelho do rapto, a chegada ao fundo

mais ardente, onde tornar a reunir

cada fragmento nosso, perdido,

de dor e de delicadeza.

 

Carlito Azevedo

publicado por RAA às 14:31 | comentar | ver comentários (3) | favorito
21
Jun 12
21
Jun 12

"Ela, a Poesia, hoje"

Ela, a Poesia, hoje,

Como que foge

De si mesma e se dói

De ter sido algum dia

Meramente poesia.

 

Erra,

Solitária e solene,

Nos caminhos da terra,

E vitupera o céu

E o que ele encerra:

-- Ah! morra! Ah! esqueça Orfeu!

 

Canta a grilheta, a enxada

E a madrugada

Dos dias que hão-de vir,

E como frutos, cair

Em nossas mãos...

 

Fala no imperativo,

E tem por vocativo

-- Irmão! Irmãos!

 

Mas longe,

E perto, porque em nós,

Onde uma fonte canta

Uma toada clara,

Um fauno sabe e ri,

Na pedra gasta e escura,

Um fim de riso

De ironia rara...

 

Reinaldo Ferreira

publicado por RAA às 11:39 | comentar | favorito
19
Jun 12
19
Jun 12

A UMA TRANÇA DE CABELOS NEGROS

Diversa em cor, igual em bizarria

Sois, bela trança, ao lustre de Sofala;

Luto por negra, por vistosa gala,

Nas cores, noite, na beleza, dia.

 

Negra, porém, de amor na monarquia

Reinais, senhora, não sereis vassala;

Sombra, mas toda a luz não vos iguala,

Tristeza, mas venceis toda a alegria.

 

Tudo sois, mas eu tenho resoluto

Que sois só na aparência enganadora,

Negra noite, tristeza, sombra, luto.

 

Porém, na essência, ó doce matadora,

Quem não dira que sois, e não diz muito,

Dia, gala, alegria, luz, senhora?

 

Jerónimo Baía

publicado por RAA às 15:33 | comentar | favorito
18
Jun 12
18
Jun 12

ARTE POÉTICA

Versos

Os que se escrevem com o pulso

Quando nos cortam a mão

...E só então...

Os que se datam com não-datas de calendário

Mas datas de mortes ou de partos;

O tempo que leva uma criança a nascer

Um cadáver a apodrecer

Não são tempos que admitam rótulo

De anos e mês e hora

Poesia

Só a da agonia

Que mata ou cria

Poemas

Só este

E os que escrevi e não escrevi quando morreste

 

 

António Neto 

publicado por RAA às 15:01 | comentar | favorito
15
Jun 12
15
Jun 12

PASTORAL EXACTA

Exacto,

à roda, o chão floresce

e ao sol exacto arqueja.

Desce,

exacto,

um rebanho

a exacta colina.

Nos ramos das árvores, exactos,

brinca o vento.

Exacto,

um regato

lento

rumoreja.

E, exacto,

um pastor,

cantando exalta o mundo exacto.

Outro,

nem o pode supor.

 

Armindo Rodrigues

publicado por RAA às 14:55 | comentar | favorito
14
Jun 12
14
Jun 12

PURA GENÉTICA

Mi madre se fue.

Me buscaron otra.

 

Mi padre lo hizo después.

Me buscaron otro.

 

El amor me abandonó.

Lo busqué yo.

 

Todo por sustitución,

así me enseñaron,

para que nadie

me hiciera daño.

 

Es verdad que los hijos

se parecen a los padres:

a ti ya te he cambiado

por un coche verde.

 

Cecilia Quílez

publicado por RAA às 16:04 | comentar | favorito