22
Out 12
22
Out 12

TERRA

2

 

Todos os caminhos vão encontrar as «almas».

De pedra branquinha, cruz talhada no cimo

e as chamas que o Senhor atiçou para purificar as almas.

Padre-nosso... Ave-Maria...

O pintor nem esqueceu o pudor dos penitentes.

Padre-nosso... Livrai-nos do fogo, Santo Deus!

Há uma caixinha para as esmolas da igreja.

E o trabalhador vem, despeja a reza e a moeda.

Mas veio um ladrão e roubou o dinheiro.

Sacrílego!

O Senhor lá continua sentado no trono.

E o fogo revive no corpo dos homens.

 

Fernando Namora

publicado por RAA às 19:18 | comentar | favorito
19
Out 12
19
Out 12

"Ah, a noite que eu, sem fim, passei..."

Ah, a noite que eu, sem fim, passei...

O Tempo alargava a sua duração

E dava-lhe o cerne do que na vida amei.

Comentaram alguns, pela noite fora,

Como se ia escoando a sua mansidão.

Mas a noite somente consentia a aurora...

 

Das nuvens tão denso era o breu

Que já não se sabia o que era Terra ou Céu.

Ao longe o raio entre trevas se escondia:

Era um negro que entre lágrimas sorria.

 

Brandi alto o sabre da minha vontade

E tingi o manto dessa mesma aurora

Ao ferir o colo da escuridade

Com o sangue da noite, pela noite fora.

 

Ibn Sara

(Adalberto Alves)

publicado por RAA às 18:54 | comentar | ver comentários (2) | favorito
16
Out 12

2009, PINA BAUSCH

«As eleições de domingo no Benfica

estão comprometidas; morreu

Pina Bausch, a coreógrafa alemã.» -- foi assim,

de rajada, numa frase única a colar-se

ao vidro do táxi, que fiquei a saber da sua morte.

 

E tive pena, recordei enquanto não pedia troco

a tristeza feliz de a ver dançarCafé Müller

há um ano, no tempo em que estávamos vivos.

 

Mas já não tenho poemas.

Nem mesmo para si, Pina Bausch.

 

Manuel de Freitas

publicado por RAA às 18:59 | comentar | favorito
16
Out 12

...

[...] nãi há poeta, que o seja de nascença e de índole, que não proteste -- clara ou veladamente -- contra o presente, contra o imediato existente, quer se debruce sobre o passado, quer se volte para o futuro.»

João de Barros, Eugénio de Castro (conferência), 1945 

publicado por RAA às 18:45 | comentar | favorito
15
Out 12
15
Out 12

A GOTA DE ÁGUA

A lágrima triste

Que por ti surgiu

Mal que tu a viste,

Quase se não viu...

 

Como quem desiste,

Logo se deliu...

E, mal lhe sorriste,

Logo te sorriu.

 

Já não era a dor,

O sinal aflito

Duma funda mágoa;

Era o infinito

-- O infinito amor

Numa gota de água...

 

Augusto Gil

publicado por RAA às 13:28 | comentar | ver comentários (2) | favorito
11
Out 12
11
Out 12

ANUNCIAÇÃO DA PRIMAVERA, 2

Não sei de onde vem esta bruma,

se dos meus olhos, se

do rio. Um sol frouxo, próprio

 

das manhãs de domingo, escurecia

o vermelho, o amarelo das casas.

Dentro de mim, a musical

 

floração das cerejeiras havia começado.

Noutro lugar, noutro dia.

E de repente começou a cantar

 

um pássaro inesperado, um ramo

que não havia, no céu tranquilo

onde a manhã total principia.

 

Foz do Douro, 20.3.96

 

Eugénio de Andrade

publicado por RAA às 18:35 | comentar | favorito
07
Out 12
07
Out 12

CHUVA OBLÍQUA (II)

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,

E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

 

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,

E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

 

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes

Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça

E sente-se chiar a água no facto de haver coro...

 

A missa é um automóvel que passa

Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...

Súbito vento sacode em esplendor maior

A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo

Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe

Com o som de rodas de automóvel...

 

E apagam-se as luzes da igreja

Na chuva que cessa...

 

Fernando Pessoa

publicado por RAA às 23:49 | comentar | ver comentários (2) | favorito
04
Out 12
04
Out 12

A FLOR E A FONTE

"Deixa-me, fonte!" dizia

a flor, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria,

cantava, levando a flor.

 

"Deixa-me, deixa-me, fonte!"

Dizia a flor a chorar:

"Eu fui nascida no monte...

Não me leves para o mar."

 

E a fonte, rápida e fria,

com um sussurro zombador,

por sobre a areia corria,

corria levando a flor.

 

"Ai, balanços do meu galho,

balanços do berço meu;

ai, claras gotas de orvalho

caídas do azul do céu!..."

 

Chorava a flor, e gemia,

branca, branca de terror,

e a fonte, sonora e fria,

rolava, levando a flor.

 

"Adeus, sombra das ramadas,

cantigas do rouxinol;

ai, festa das madrugadas,

doçuras do pôr do sol;

 

carícia das brisas leves

que abrem rasgões de luar...

Fonte, fonte, não me leves,

Não me leves para o mar!..."

 

As correntezas da vida

e os restos do meu amor

resvalam numa descida

como a da fonte e da flor...

 

Vicente de Carvalho

publicado por RAA às 12:22 | comentar | ver comentários (2) | favorito