PROJECTO DE SILÊNCIO
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E. M. de Melo e Castro
Poemografias -- Perspectivas
da Poesia Visual Portuguesa (1985)
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E. M. de Melo e Castro
Poemografias -- Perspectivas
da Poesia Visual Portuguesa (1985)
Cantai bichos da treva e da aparência
Na absolvição por incontinência
Cantai cantai no pino do inferno
Em Janeiro ou em Maio é sempre cedo
Cantai cardumes da guerra e da agonia
Neste areal onde não nasce o dia
Cantai cantai melancolias serenas
Como trigo da moda nas verbenas
Cantai cantai guisos doidos dos sinos
Os vossos salmos de embalar meninos
Cantai bichos da treva e da opulência
A vossa vil e vã magnificência
Cantai os vossos tronos e impérios
Sobre os degredos sobre os cemitérios
Cantai cantai ó torpes madrugadas
As clavas os clarins e as espadas
Cantai nos matadouros nas trincheiras
As armas os pendões e as bandeiras
Cantai cantai que o ódio já não cansa
Com palavras de amor e de bonança
Dançai ó Parcas vossa negra festa
Sobre a planície em redor que o ar empesta
Cantai ó corvos pela noite fora
Neste areal onde não nasce a aurora
José Afonso
Cães ladrando
entre o murmúrio das águas.
Flores de pessegueiro carregando
pesadas gotas de chuva.
Veados saltando
no fundo da floresta.
Bambus selvagens perfurando
a névoa gris.
Cascatas voando
suspensas de cumes verdejantes.
Meio-dia, não se ouvem sinos.
Ninguém sabe onde encontrar o velho mestre.
Triste, procuro apoio
em dois ou três pinheiros.
Li Bai / António Graça de Abreu
Poemas de Li Bai
Dei-lhe
uma sticada
e deixei-a
abananada
Dick Hard,
De Boas Erecções Está o Inferno Cheio
uma brochura
que mal se sustenta de pé
na biblioteca pública
de uma cidadezinha qualquer
as páginas amareladas
de uma antologia
com trezentos e tantos
tantos tantos "poetas"
um título
perdido
(muito cedo, muito cedo)
nas prateleiras de um sebo
apenas um nome
(nowhere man)
na babilônica
lista telefônica
numa obscura
repartição pública
(beneficência da língua portuguesa)
sem cura
um bando bêbado
no fundo do bar
olhando pro nada
e pensando que é o mar
no tumulto da vida -- o túmulo
requiescat in pace
& não volte jamais
Carlos Ávila
Na Virada do Século --
Poesia de Invenção no Brasil (2002)
edição: Claudo Daniel
e Frederico Barbosa
When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;
How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved your pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;
And bending down beside the glowing bars,
Murmur a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.
W. B. Yeats,
The Secret Rose (1897) /
Poemas (ed. bilingue)
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sòzinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum ragalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva com a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos -- as rainhas!
O Livro de Cesário Verde
Um pouco mais de sol -- eu era brasa.
Um pouco mais de azul -- eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho -- ó dor! -- quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim -- quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
-- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... --
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templo aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol -- vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
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Um pouco mais de sol -- e fora brasa,
Um pouco mais de azul -- e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Mário de Sá-Carneiro,
Poemas Escolhidos
Esta manhã
hoje
é um nome
Fiama, Barcas Novas
É assim a manhã, um nome
para o mundo, abrir os olhos como
alguém que fala
Podem o tempo ou a
morte diurna
dar aos olhos abertos o nada das palavras
O sol será então
o silêncio no olhar ou na mão
sobre a testa
que faz descer as pálpebras
como se os dedos dessem à cabeça a verdade
submersa nesse nada
e a manhã viesse
não como sombra vasta vestir a voz
do corpo
mas cobri-la da
luz
das palavras que faltam
Gastão Cruz,
Rua de Portugal / O Escritor 22
Apenas hoje! Apenas uma vez,
Fala de modo que a verdade seja
Tão clara e transparente, que eu a veja
Num cristal da mais pura limpidez!
Talvez seja loucura o que deseja
A minha insaciedade. Sim, talvez...
Que tu fosses, falando, a outra que és,
Com a alma nos lábios, quando beija.
Mal empregado privilégio, a fala,
Que traduz a verdade em que pensamos,
As palavras gastando em ocultá-la!
Que seja assim quando se odeia, vamos...
Mas para quê se dissimula ou cala,
Quando tudo nos diz que nos amamos?!
Carlos Queirós,
Desaparecido