31
Jan 14
31
Jan 14

"Já nada me interessa."

Já nada me interessa. Levanta-te e dá-me o vinho!

Esta noite, a tua boca é a mais bela rosa do universo...

Vinho! Que ele seja rubro como as tuas faces

e os meus remorsos tão leves como os anéis da tua cabeleira.

 

Omar Khayyam, Rubayat

(trad., Fernando Castro)

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29
Jan 14
29
Jan 14

"Retirados à altura da sua idade, ouviam."

Retirados à altura da sua idade, ouviam.

Mas ouviam frequências onde o rumor do mundo,

esbatido, somente amanhecia

azul visível, atento timbre e pulso.

Ouviam tudo quanto a si se ouvia

no concerto de tudo.

E nessa solidão de intensa companhia

em que a altura da idade era um azul profundo.

 

Fernando Echevarría

Relâmpago #2 (1998)

 

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23
Jan 14
23
Jan 14

AROMA

Não invejo quem possa merecer

A realidade da tua presença.

Prefiro imaginar-te de intangível matéria,

Com medo de acordar a Beleza que sonmha

Na inefável harmonia dos teus gestos...

 

Assim fosse o teu corpo uma espécie de aroma,

Que apenas preenchesse o ar que eu respirasse!

 

Carlos Queirós,

Desaparecido (1935)

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17
Jan 14
17
Jan 14

VOLÚPIA

No divino impudor da mocidade,

Nesse êxtase pagão que vence a sorte,

Num frémito vibrante de ansiedade,

Dou-te o meu corpo prometido à morte!

 

A sombra entre a mentira e a verdade…

A nuvem que arrastou o vento norte…

-- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:

Meus beijos de volúpia e de maldade!

 

Trago dálias vermelhas no regaço…

São os dedos do sol quando te abraço,

Cravados no teu peito como lanças!

 

E do meu corpo os leves arabescos

Vão-te envolvendo em círculos dantescos

Felinamente, em voluptuosas danças…

 

Florbela Espanca

Charneca em Flor (1931) / Antologia Poética 

edição de Fernando Pinto do Amaral

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16
Jan 14

ÁRVORES DO ALENTEJO

Ao Prof. Guido Battelli

 

Horas mortas… Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido… e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção duma fonte!

 

E quando, manhã alta, o sol posponte

A oiro a giesta a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis do horizonte!

 

Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

 

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

-- Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

 

Florbela Espanca,

Charneca em Flor (1931) /

Antologia Poética

edição de Fernando Pinto do Amaral 

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16
Jan 14

A EPOPEIA DOS MALTESES

Choros que o pó amassaram,

Ódios, fel, desesperança,

Minha crueza geraram:

Sou a estátua da Vingança!

 

Maltês, meu nome de guerra!

Ver-me é logo pressentir

Que o vento sul se descerra:

Já mirram searas de o ouvir!

 

De noite vou pelas eiras,

-- Alma em fogo – deitar fogo

As searas, medas inteiras:

Abraso e assim desafogo!

 

Sou fera? Vá, que me domem!

-- E vós outros que sereis?

Não sou fera, não, sou o Homem,

O Escravo firmando leis!

 

Meu sangue reza nas veias;

Por quem reza? Por quem chora?

Pelos que em terras alheias

Foram escravos outrora!

 

Oculto no chão barrento,

Com piedade, com ternura,

Os que dormem ao relento,

Os mortos sem sepultura!

 

Coveiro da própria raça!

Dor de além-dor! Ao que eu vim!

Grito e medo me trespassa,

Acordo e fujo de mim!

 

Existo e ausento-me. Há escuro

Na minha memória: – em vão

Me interrogo e me procuro…

Sou realidade ou visão?

 

Choro, e as lágrimas apagam

Dúvidas, queixas, martírios…

Unções celestes afagam

A noite dos meus delírios!

 

Nos montes, a medo, às tardes,

Trancam-se as portas; se as forço,

Caem-me aos pés os covardes,

Mudos de assombro e de remorso!

 

Ascendo às regiões supremas;

Ao alto, bem alto, ao cimo,

Quebro todas as algemas:

Não sou eu; sou Deus, – redimo!

 

Ricos, prostrai-vos: é a hora!

Sou Deus, esmago Satã:

Do sangue nasce uma aurora,

Nas almas é já manhã!

 

Mário Beirão, O Último Lusíada

in Cabral do Nascimento, Líricas Portuguesas - 2.ª Série

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15
Jan 14

"Não desprezes tuas vestes"

Não desprezes tuas vestes

Só porque elas estão usadas:

É por causa do teu corpo

Que se encontram assim conspurcadas.

 

Al-Mirtuli

in Adalberto Alves,

O Meu Coração É Árabe --

A Poesia Luso-Árabe (1987)

publicado por RAA às 19:58 | comentar | favorito

RODOPIO

Volteiam dentro de mim,

Em rodopio, em novelos,

Milagres, uivos, castelos,

Forcas de luz, pesadelos,

Altas torres de marfim.

 

Ascendem hélices, rastros...

Mais longe coam-me sóis;

Há promontórios, faróis,

Upam-se estátuas de heróis,

Ondeiam lanças e mastros.

 

Zebram-se armadas de cor,

Singram cortejos de luz,

Ruem-se braços de cruz,

E um espelho reproduz,

Em treva, todo o esplendor...

 

Cristais retinem de medo,

Precipitam-se estilhaços,

Chovem garras, mantas, laços...

Planos, quebras e espaços

Vertiginam em segredo.

 

Luas de oiro se embebedam,

Rainhas desfolham lírios;

Contorcionam-se círios,

Enclavinham-se delírios.

Listas de som enveredam...

 

 

Virgulam-se aspas com vozes,

Letras de fogo e punhais;

Há missas e bacanais,

Execuções capitais,

Regressos, apoteoses.

 

Silvam madeixas ondeantes,

Pungem lábios esmagados,

Há corpos emaranhados,

Seios mordidos, golfados,

Sexos mortos de anseantes...

 

(Há incensos de esponsais,

Há mãos brancas e sagradas,

Há velhas cartas rasgadas,

Há pobres coisas guardadas --

Um lenço, fitas, dedais...)

 

Há elmos, troféus, mortalhas,

Emanações fugidias,

Referências, nostalgias,

Ruínas de melodias,

Vertigens, erros e falhas.

 

Há vislumbres de não-ser,

Rangem, de vago, neblinas,

Fulcram-se poços e minas,

Meandros, pauis, ravinas,

Que não ouso percorrer...

 

Há vácuos, há bolhas de ar,

Perfumes de longes ilhas,

Amarras, lemes e quilhas --

Tantas, tantas maravilhas

Que não se pode sonhar!...

 

Mário de Sá-Carneiro,

Poemas Escolhidos

(edição de Clara Rocha)

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15
Jan 14

O MEU RISO

Bem de meus olhos, pobres olhos nunca enxutos,

Por onde corre a minha mágoa em brando rio,

Aonde vem pousar o teu olhar macio

Que tem o bom dulçor dos mais suaves frutos.

 

Quando o Coveiro, um dia, arremessar, sombrio,

O teu corpo gentil aos vermes resolutos,

De lá, da esfera azul dos astros impolutos,

Verás então, Mulher, verás como eu me rio…

 

Um riso contrafeito, uma ironia à toa…

Linda Mulher honesta e frágil como um cicio…

Que eu não te quero a ti para noivar, perdoa!

 

Porque o meu lábio beijou a Podridão,

Nas alcovas do Mal onde germina o Vício,

Onde a alma é um farrapo e o Amor uma traição!

 

José Duro,

Fel (1898)

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14
Jan 14
14
Jan 14

"Aquele homem desejou-me longa vida"

Aquele homem desejou-me longa vida…

De que serve ao prisioneiro vida prolongada?

Não é a morte melhor p’ra quem padece

E sente sem fim a vida atormentada?

E se outros esperam descobrir o amor

Meu único fito é encontrar a morte…

Deverei viver p’ras minhas filhas ver

Rotas, famintas, no vaivém da sorte?

Serviçais daqueles cuja maior missão

Seria, tão-somente, anunciar-me

Afastar gente que me embaraçasse

Ou cavalgar, para, preparar-me

Tropas alinhadas, quando o pendão se levantasse,

Exausto de correr à frente e atrás

Se a desordem na fila se mostrasse?

O voto que alguém sinceramente faz

É feito p’ra valer, se de alma pura:

Possa aquele homem bom ser premiado

Que a vida lhe dê maior doçura.

Minh’alma achou conforto no que lhe foi dado

E na certeza de que nada dura.

 

 

 Al-Mu'tamid

Adalberto Alves, O Meu Coração É Árabe – A Poesia Luso-Árabe (1987)

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