19
Mai 14
19
Mai 14

UM BARCO

Corre um barco no sulco do canal

mais longínquo da ria; enquanto passo

para o poema o seu percurso, faço

morrer a imagem branca que imortal

 

há pouco parecia; agora o espaço,

que da mancha mortal,  ponto de cal,

livre ficou, um troço é afinal

do ramo de água que na tarde traço,

 

a sucessão olhando de um e e outro

avulso braço da laguna fria,

e desfaço, no verso onde esse barco

 

naufragou quando quase ainda o via,

correndo e já ausente, breve potro,

na distância da água vivo rastro

 

Gastão Cruz,

in O Escritor #22

(Outubro 2007)

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16
Mai 14
16
Mai 14

"Quando a mulher está"

Quando a mulher está,

tudo é tranquilo o que é

-- a chama, a flor, a música --.

Quando a mulher partiu

-- a luz, o canto, a chama --,

tudo é, louco, a mulher.

 

Juan Ramón Jimenez

(trad.: José Bento)

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15
Mai 14
15
Mai 14

O INVERNO

Velho, velho, velho.

Chegou o Inverno.

 

Vem de sobretudo,

vem de cachecol,

o chão onde passa

parece um lençol.

 

Esqueceu as luvas

perto do fogão:

quando as procurou,

roubara-as um cão.

 

Com medo do frio,

encosta-se a nós:

dai-lhe café quente

senão perde a voz.

 

Velho, velho, velho.

Chegou o Inverno.

 

Eugénio de Andrade,

in Poetas de Hoje e de Ontem --

Do Século XIII ao XXI para os Mais Novos

(Maria de Lourdes Varanda e Maria Manuela Santos)

publicado por RAA às 18:25 | comentar | favorito
14
Mai 14
14
Mai 14

"Os nossos dias fogem tão rápidos como água do rio"

Os nossos dias fogem tão rápidos como água do rio

ou vento do deserto.

Entretanto, dois dias me deixam indiferente:

o que passou ontem e o que virá amanhã.

 

Omar Khayyam,

Odes ao Vinho

(trad.: Fernando Castro)

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12
Mai 14

LA VÉNUS CALLYPIGE

Du temps des Grecs, deux sœurs disaient avoir
Aussi beau cul que filles de leur sorte ;
La question ne fut que de savoir
Quelle des deux dessus l'autre l'emporte :
Pour en juger, un expert étant pris,
À la moins jeune il accorde le prix,
Puis, l'épousant, lui fait don de son âme ;
À son exemple, un sien frère est épris
De la cadette, et la prend pour sa femme ;
Tant fut entre eux à la fin procédé,
Que par les sœurs un Temple fut fondé,
Dessous le nom de Vénus belle fesse.
Je ne sais pas à quelle intention ;
Mais c'eût été le temple de la Grèce
Pour qui j'eusse eu plus de dévotion. 

 

Jean de La Fontaine,

in Pierre Ripert,

Dictionaire Anthologique de la

Poésie Française

publicado por RAA às 17:33 | comentar | favorito
12
Mai 14

"A morte dá poemas para jovens."

A morte dá poemas para jovens.

 

Se somos mais os mortos do que os vivos

se já só posso amar tantos que amei

com as letras fingidas da memória

 

se mesmo tu

o meu amor sem tempo

também hás-de morrer na solidão

duma morte real e sem partilha

 

aos poemas da morte sobrou vida.

publicado por RAA às 13:26 | comentar | favorito
08
Mai 14
08
Mai 14

INCONSTÂNCIA

A Aquilino Ribeiro


Tenho, às vezes, vontade de deixar-te.
E tenho, às vezes, medo de perder-te.
Não sei, às vezes, se hei-de abandonar-te,
Não sei, às vezes, se hei-de mais prender-te.

Por mais que queira, às vezes, esquecer-te,
Por mais que entenda, às vezes, ignorar-te,
Sinto o desejo enorme só de ter-te
Junto de mim na ânsia de abraçar-te.

Por mais que feche os olhos p'ra não ver-te
Ainda te encontro mais por toda a parte,
Tenha embora vontade de esconder-te.

Vivo nesta tortura de buscar-te,
Nesta inconstância atroz de não querer-te,
-- Meu fugidio sonho da minha Arte.

 

Alexandre de Córdova,

Primavera Voluptuosa

publicado por RAA às 13:43 | comentar | favorito
06
Mai 14
06
Mai 14

PASTORAL

Por ser tão leve o teu passar

Na estrada, à tarde, quando vens

De pôr o gado que não tens,

A pastar...

 

Por ser tão brando o teu sorrir,

Tão cheio de feliz regresso

Do longe prado, onde apeteço

Contigo ir...

 

Por ser tão breve o teu querer

Alguém que perto de ti passe

E, porque a tarde cai, te abrace,

Sem nada te dizer...

 

Por ser tão calmo o teu sonhar

Que já é tempo de não ter

Esse rebanho de pascer,

Mas outro de amamentar...

 

É que eu me perco no caminho

Do grande sonho sem janelas,

De estar contigo no moinho,

Sem o moleiro nem as velas.

 

Carlos Queirós, Desaparecido

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