27
Fev 15
27
Fev 15

PRIMAVERA DE BALAS

Agarro

Na minha última humilhação

E sem ir embora da minha terra

Emigro para o Norte de Moçambique

Com uma primavera de balas ao ombro.

 

E lá

No Norte almoço raízes

Bebo restos de chuva onde bebem os bichos

No descanso em vez da minha primavera de balas

Pego no cabo da minha primavera de milhos

E faço machamba ou se for preciso

Rastejar sobre os cotovelos

E os joelhos

Rastejo.

 

Depois

 

Escondido em posição no meio do mato

Com a minha primavera de balas apontada

Faço desabrochar no dólman do sr. Capitão

As mais vermelhas flores florindo

O duro preço da nossa bela

Liberdade reconquistada

Aos tiros!

 

José Craveirinha,

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III

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25
Fev 15
25
Fev 15

NÃO É PARA MIM

a J. B.

 

Subi todos os degraus

que o ar constrói

nas palmas das mãos dos homens.

 

Vesti as roupas ásperas

que o vento enrola

no corpo de todos os homens,

e senti os seus dedos arenosos

despertarem-me, persuasivos,

para uma vida livre e errante.

 

Vivi na praia

o eterno namoro do mar,

a sua poesia arrebatada,

a sua música quente e apaixonada.

 

Mas a música

a poesia,

a vida livre e errante,

as imagens

são uma verdade longínqua

que não é sossego

nem para o meu espírito

nem para a minha carne...

 

João Vário, Horas sem Carne (1958) /

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban I

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10
Fev 15
10
Fev 15

"Eu sabia por ela as estações»

Eu sabia por ela as estações

os esquilos os corvos as gaivotas.

Chegada a primavera abria os nós

em flores precipitadas e carnudas

de longas redondezas tacteantes

que batiam no vidro da janela.

Não dava fruto a minha castanheira

e na verdade não era sequer minha

ou só seria porque nos olhámos

cada manhã por mais de trinta anos.

Mas dava flores e esquilos e gaivotas

verão outono corvos primavera

sem contabilidades biológicas

doutras fertilidades transmissíveis.

Dava flores como se desse versos

sem precisar por isso de escrevê-los

como os amantes se amam num só corpo

sem ver onde um começa e o outro acaba

aberta toda em lábios vaginais

com uterinos longos falos brancos.

Também este ano floriu no tempo certo.

Mas o inverno chegou em plenas maias.

Disseram que a raiz rachou ao meio

que o centro do seu tronco estava oco

não percebiam como tinha flores.

Cortaram membro a membro a minha árvore

ficou só a raiz e o seu vazio

e sobre o campo em volta a neve quente

das suas flores perplexas

impossíveis.

 

Helder Macedo, Viagem de Inverno

 

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05
Fev 15
05
Fev 15

ESCRITA

O melro sai

do mato ali em baixo,

monte acima, em direcção

à casa, irrompe

por entre os ramos

do ulmeiro & voa rápido

sobre a casa:

folhas que volteiam e se agitam

registam

o tamanho, a direcção e a velocidade.

 

A. R. Ammons

(versão de Maria de Lourdes Guimarães),

Limiar #4, Porto, 1994

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03
Fev 15
03
Fev 15

CONVERSÃO

Descuidado andava no bosque do vale

No tempo dos jacintos,

Até que a beleza como um pano perfumado

Que me cobrisse me estrangulou. Fui amarrado,

imóvel e sem poder respirar,

Pelo encanto que era o eunuco dela.

E agora eis que entro no rio final

Ignominiosamente, num saco, sem ruído,

Como qualquer turco no Bósforo que espreitasse o harém.

 

T. E. Hulme,

in Jorge de Sena, Poesia do Século XX (1978)

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