30
Mar 16
30
Mar 16

«He loved beauty that looked kind of destroyed.»*

Gostava dessa espécie de beleza

que podemos surpreender a cada passo,

desvelada pelo acaso numa esquina

de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta

que foi toda a infância de alguém,

com visitas ao domingo e tardes no quintal

depois da escola; a beleza crepuscular

de alguns rostos num retrato de família

a preto e branco, ou a de certos hotéis

que conheceram há muito os seus dias de fulgor

e foram perdendo estrelas; a beleza condenada

que nos toma de repente, como um verso

ou o desejo, como um copo que se parte

e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.

Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós

consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada

onde a vida encontra o espelho mais fiel.

 

*James Gavin, Deep in a Dream: The Long Night Of Chet Baker, Londres, Vintage, 2003, p. 312.

 

Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira /

/ Resumo -- A Poesia em 2009

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28
Mar 16
28
Mar 16

CANÇÃO DE OUTONO

Ritmo de soluços

Tem esta triste canção

Na aparência toda calma;

É que sobe à minha boca

O que trago na minha alma.

 

É hoje que tenho penas.

-- As mesmas que sempre tive --

Assim lembrando-as a fundo

Sinto que a vida

Me sustem no meu declive...

 

 

Cantando, a gente, amortece

A mágoa maior que seja.

É como beijar a boca

Dalguém que também nos beija.

 

Coração -- pobre erradio,

Quando acabas de cantar?

-- Acaba, que tenho frio...

Dir-se-ia que vai nevar...

 

António Botto

in presença 20,

Coimbra, 1929

 

 

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12
Mar 16
12
Mar 16

O PRATO DA MENINA

A menina tinha um prato

e dentro do prato um pato

de penas cinzentas e lisas

e no fundo desse prato

havia um prato pintado

e dentro do prato um pato

com uma menina ao lado.

E essa menina de tinta

tinha um prato mais pequeno

e dentro do prato um pato

de penas cinzentas lisas

e no fundo desse prato

estava outra menina ao lado

de um outro pato de penas

cada vez mais pequeninas.

Se a menina não comia

não via o fundo do prato

que tinha lá dentro um pato

de penas cinzentas lisas,

nem via a outra menina

que era bem mais pequenina

e tinha na frente um pato

um pato muito bonito

de penas cinzentas lisas

tão pequenas tão pequenas

que até parecia impossível

como a menina ainda via

e imaginava o desenho

até ao próprio infinito.

 

Maria Alberta Menéres,

in Maria de Lourdes Varanda & Maria Manuela Santos,

Poetas de Hoje e de Ontem --

Do Século XII ao XXI para o Mais Novos

publicado por RAA às 22:28 | comentar | favorito
08
Mar 16
08
Mar 16

NOCTURNO

Noite,

noite velha

nos caminhos.

A lua no alto

fingindo-se cega.

Estrelas. Algumas

caíram ao rio.

As rãs

e as águas

estremecem de frio.

 

Eugénio de Andrade, Primeiros Poemas

publicado por RAA às 22:55 | comentar | favorito
07
Mar 16
07
Mar 16

GREEN GOD

Trazia consigo a graça

das fontes quando anoitece.

Era o corpo como um rio

em sereno desafio

com as margens quando desce.

 

Andava como quem passa

sem ter tempo de parar.

Ervas nasciam dos passos,

cresciam troncos dos braços

quando os erguia no ar.

 

Sorria como quem dança.

E desfolhava ao dançar

o corpo, que lhe tremia

num ritmo que ele sabia

que os deuses devem usar.

 

E seguia o seu caminho,

porque era um deus que passava.

Alheio a tudo o que via,

enleado na melodia

duma flauta que tocava.

 

Eugénio de Andrade, 12 Poemas (1995)

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