21
Dez 17
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Dez 17

"Viajar é um exercício lento"

Viajar é um exercício lento

(ofício do olhar)

primeiro, estendes os mapas

à passagem do vento

depois, misturas as cores

no lume cerrado da terra

 

a respiração dos cartógrafos

ensina a ver

o coração das ínfimas coisas

a gestação da sombra

ou mesmo, o sentido cego

das bússolas.

 

Fernando Jorge Fabião, Na Orla da Tinta (2001)

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19
Dez 17
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Dez 17

BOCAGE

Já não sou. Já não serei

se fui. Agora à cova

além dos ossos e caroços

muito mais descerá.

O verso, o riso, o vinho,

a mão ladina sobre a carne morna,

tantas coisas sentidas, ressentidas,

intenções, bolandas, entreactos,

entradas por saídas, choros finos:

muito mais descerá.

 

Não sou, é certo, e não serei,

mas no descer de tudo

já nem fui.

 

Pedro Tamen, Analogia e Dedos (2006

publicado por RAA às 13:03 | comentar | favorito
15
Dez 17
15
Dez 17

PERSISTÊNCIA

Desmembrado, o corpo. Apenas um rosto,

a imobilidade larvar da carne

e o silêncio só excedido pelo livor

que, sobre as feições, vai baixando,

sem doçura, nem misericórida.

 

Cerrados, os lábios configuram

a nudez próxima da maxila.

O sangue é já pó na poeira gretada

e o riso claro dos deuses,

que a brisa ligeira arrasta,

 

dissolve-se na frágil memória

da erva. Pela noite dentro,

na pausa lenta que perdura,

insinuante, sílaba a sílaba,

pertinaz instala-se o canto.

 

Rui Knopfli, O Corpo de Athena (1984)

publicado por RAA às 13:51 | comentar | favorito
14
Dez 17
14
Dez 17

"Caudais de sangue desencadeados"

Caudais de sangue desencadeados

Pela injustiça milenária

A força bruta

 

O rio

Passam a chamar-lhe

História

 

Caudais de sangue

Entrecortados

Por uma luz que a injustiça

E a força bruta

Não conseguiram nunca

Contaminar

 

As linhas não se encontram

 

O contraponto

Não existe

 

Universos

Completamente alheios

Um ao outro

 

Os caudais de sangue

Prosseguem

Desaguam na história

E no que passaram a chamar

De progresso

 

Não há redenção

 

Voltado para a luz

Há outo plano

Há o crescer da árvore e do poema

O florir do amor

Irmandade imensa

Milenariamente

Escorraçada

 

Sobrevivendo apenas

Na ocultação profunda

Mesmo quando brilha

De dentro

Para todos os lados

 

Londres

6-7 de Agosto 90

 

Alberto de Lacerda, Átrio (1997)

publicado por RAA às 13:24 | comentar | favorito