SONETO XXIII

De esquivo amor cristal translúcido perdura,

que, em se mudando, é sempre a mesma a cousa amada.

Com argila de luz eu a moldei criatura,

fazendo-me a seguir, na forma por mim criada.

O mundo, ele me dá de comer -- e devora-me.

Piso-o pisando a morte, e por mais que o reinvente,

o mundo é sempre o mesmo... Esta a razão, senhora,

de em minha voz alguém se rir tràgicamente.

Vezes e vezes junto a ilusórios portões

eu clamei, mas se alguém respondia de dentro,

a vida me barrava a entrada em seus salões.

A vida é sempre a mesma -- e a morte rói-lhe o centro.

      Neste árido jardim a minha sede é tanta,

      que sempre há-de romper-se a grade da garganta.

 

Afonso Félix de Sousa,

in José Valle de Figueiredo,Antologia da Poesia Brasileira

publicado por RAA às 23:17 | comentar | favorito