29
Nov 11

CANÇÃO DA ROÇA

Roça tem sol

roça tem água

café maduro

e cacau gostoso...

 

              Roça tudo tem!

 

Mas roça também tem

sangue de negro e mulato

correndo nas ribeiras

saltitando nas lavadas

gritando

gritando sempre:

«Fugi di roça

Fugi di roça!»

E na ânsia de levar o grito

para o vale e para a montanha

corre por todos os cantos da roça!

E esse sangue ne negro e mulato

é seiva que faz properar...

o cafeeiro cresce

é cacau gostoso

e a verdura trepa

trepa para os céus!

Mas o grito desse sangue derramado

fica ao de cima pairando no tempo...

E nas noites de vento

e nas noites de calma

nas manhãs de sol

e nos dias de chuva...

 

                           «Fugi di roça

                            fugi di roça!»

 

Terêncio Anahory

publicado por RAA às 15:00 | comentar | favorito
27
Jun 11

...

Quen a sesta quiser dormir,
conselhá-lo-ei a razon:
tanto que jante, pense d'ir
à cozinha do infançon:
e tal cozinha lh' achará,
que tan fria casa non á
na oste, de quantas i son.

Ainda vos en mais direi
eu, que um dia i dormi:
tan bõa sesta nan levei,
des aquel di' an que naci,
como dormir en tal logar,
u nunca Deus quis mosca dar
ena mas fria ren que vi.

E vedes que ben se guisou
de fria cozinha teer
o infançon, ca non mandou
des ogan' i fogo acender;
e, se vinho gaar d'alguen,
ali lho esfriarán ben,
se o frio quiser bever.

Pero da Ponte
publicado por RAA às 14:27 | comentar | favorito
16
Jun 11

...

Queridas pastelarias
queridos pastéis
queridas pessoas
querida fé
querido café

Adília Lopes
publicado por RAA às 11:41 | comentar | favorito
10
Mai 11

A ALCACHOFRA

Filha das águas e da terra
Para quem lhe almeja os dons
É corpo numa veste de recusa.
E na sua beleza obstinada
Bem no cimo lá da haste
Lembra uma jovem cristã
Que cota de espinhos usa.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)
publicado por RAA às 11:58 | comentar | favorito
19
Abr 11

MAÇÃS E PÊRAS

Aceitai,
     Como rostos amáveis que se vos mostrassem
     Ou tímidos seios palpitando vossas mãos
estas maçãs: Pérolas entre nós espalhadas
Como botões em seu ramo postos.
Tomai-as e ofertai-as aos presentes
Como vinho preso de surpresa
Pelo gelo de inverno.
Eis também pêras para duplicar a minha dádiva.
E apenas se me oferece dizer:
São tão-somente brancas faces
Onde pousaram profundos olhos negros.

Ibn 'Ammar

(Adalberto Alves)
publicado por RAA às 11:16 | comentar | favorito
13
Mar 11

...

Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão -- é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
-- É com as vozes que o silêncio ganha.

Herberto Helder
publicado por RAA às 23:21 | comentar | favorito
31
Jan 11

LE THÉ

Miss Hellen, versez-moi le Thé
Dans la belle tasse chinoise,
Où des poissons d'or cherchent noise
Au monstre rose épouvanté.

J'aime la folle cruauté
Des chimères qu'on apprivoise:
Miss Hellen, versez-moi le Thé
Dans la belle tasse chinoise.

Lá, sous un ciel rouge irrité,
Une dame fière et sournoise
Montre en ses longs yeux de turquoise
L'extase et la naïveté;
Miss Hellen, versez-moi le Thé.

Théodore de Banville
publicado por RAA às 11:14 | comentar | favorito
16
Jan 11

BENDITO O FRUTO

Benza-os Deus:
Os frutos acres, as cerejas, as laranjas,
Se ao beijo da manhã o sol descobre;
Laranjas -- frutos de oiro à Apollinaire
E brincos de cerejas,
Coradas de pudor à António Nobre.

Bendito o fruto, a mulher.

Afonso Duarte
publicado por RAA às 23:05 | comentar | favorito
04
Dez 10

THIS BREAD I BREAK

This bread I break was once the oat,
This wine upon a foreign tree
Plunged in its fruit;
Man in the day or wind at night
Laid the crops low, broke the grape's joy.

Once in this wine the summer blood
Knocked in the flesh that decked the vine,
Once in this bread
The oat was merry in the wind;
Man broke the sun, pulled the wind down.

This flesh you break, this blood you let
Make desolation in the vein,
Were oat and grape
Born of the sensual root and sap;
My wine you drink, my bread you snap.

Dylan Thomas
publicado por RAA às 23:12 | comentar | favorito
23
Nov 10

PARA A AVÓ ZÉ

Lembro-me de como gostava de estar
debruçado sobre a mesa da cozinha,
vendo a Avó a ferver as seringas
numa velha panela redonda de esmalte.
A mesa era grande, de mármore,
e ali fazia os deveres da escola,
num caderno quadriculado, sujo de enganos
da aritmética, com um n.º 2 mal aparado.
Hoje a Avó já não ferve as seringas,
mas desfaz os morangos em compota,
cujo aroma nos anuncia
as escuras tardes de Outono.

Estoril, 23-VI-1985
publicado por RAA às 15:37 | comentar | favorito