02
Out 18

ERÓTICA RÍTMICA

São rubras as rochas

Os rostos    as faces

São dúbios os gestos

Gravados nas rochas

No voar das aves

 

São raras tão raras

As aves nos rostos

E lentos enleios

Percorrem os dedos

Nas casas nas casas

Segredos segredos

 

São breves tão breves

Os olhos os corpos

Pesados escopos

e tantos tão poucos

(estilhaços e danos)

 

António Carlos Cortez, A Dor Concreta (2016) / Ritos de Passagem (1999)

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23
Ago 18

GUARDA REPUBLICANA A CAVALO

Tu ladeavas o cavalo, rindo

da tua tão perfeita novidade.

Qual amazona de um destino findo,

o tempo não mudava a tua idade.

 

A pistola exibias sob a coxa

e do meu desejo tua troça ria.

Enredado na lírica mais frouxa,

um soneto pobríssimo eu trazia

 

só para teu controle e vistoria.

Mas logo se soltou o teu cavalo

para bem longe de mim e da poesia.

 

E se guardo teu riso enquanto falo

e me digo e desdigo em cada dia,

guarda republicana, em teu cavalo

 

trouxeste troça feita melodia.

 

Luís Filipe Castro Mendes, Um Novo Ulisses Regressa a Casa (2016)

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13
Ago 18

"Funaná entorna, esfrega"

Funaná entorna, esfrega

dá ao chão o som inaudível

da arte. É cheiro de suor na escultura

mordida de mulher na altura da cintura

E busca a mão pastar

os degraus vermelhos das nádegas

Funaná entorta, esfrega a delícia

de espremer no corpo

o outro lado quente da balança.

 

Rony Moreira, Esticar o Infinito até à Borda do Prato (2017)

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15
Nov 17

POEMETO IRÔNICO

O que tu chamas tua paixão,

É tão-somente curiosidade.

E os teus desejos ferventes vão

Batendo as asas na irrealidade...

 

Curiosidade sentimental

Do seu aroma, da sua pele.

Sonhas um ventre de alvura tal,

Que escuro o linho fique ao pé dele.

 

Dentre os perfumes sutis que vêm

Das suas charpas, dos seus vestidos,

Isolar tentas o odor que tem

A trama rara dos seus tecidos.

 

Encanto a encanto, toda a prevês.

Afagos longos, carinhos sábios,

Carícias lentas, de uma maciez

Que se diriam feitas por lábios...

 

Tu te perguntas, curioso, quais

Serão seus gestos, balbuciamento,

Quando descerdes na espirais

Deslumbradoras do esquecimento...

 

E acima disso, buscas saber

Os seus instintos, suas tendências...

Espiar-lhe na alma por conhecer

O que há de sincero nas aparências.

 

E os teus desejos ferventes vão

Batendo as asas na irrealidade...

O que tu chamas tua paixão,

É tão-somente curiosidade.

 

Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira

(edição de Francisco de Assis Barbosa)

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15
Set 17

COMME IL FAUT

Um bom broche

acaba

sempre

num belo sorriso

 

Dick Hard, De Boas Erecções Está o Inferno Cheio (2004) 

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28
Jan 17

EVOCAÇÃO DE SILVES

Saúda, por mim, Abu Bakr,

Os queridos lugares de Silves

E diz-me se deles a saudade

É tão grande quanto a minha.

Saúda o palácio dos Balcões

Da parte de quem nunca os esqueceu.

Morada de leões e de gazelas

Salas e sombras onde eu

Doce refúgio encontrava

Entre ancas opulentas

E tão estreitas cinturas!

Mulheres níveas e morenas

Atravessavam-me a alma

Como brancas espadas

E lanças escuras

Ai quantas noites fiquei,

Lá no remanso do rio,

Nos jogos do amor

Com a da pulseira curva

Igual aos meandros da água

Enquanto o tempo passava...

E me servia de vinho:

O vinho do seu olhar

Às vezes o do seu copo

E outras vezes o da boca.

Tangia cordas de alaúde

E eis que eu estremecia

Como se estivesse ouvindo

Tendões de colos cortados.

Mas retirava o seu manto

Grácil detalhe mostrando:

Era o ramo de salgueiro

Que abria o seu botão

Para ostentar a flor.

 

Al-Mu'tamid,

in Adalberto Alves, O Meu Coração É Árabe (1987)

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16
Out 16

LITANIA

O teu rosto inclinado pelo vento;

a feroz brancura dos teus dentes;

as mãos, de certo modo, irresponsáveis,

e contudo sombrias, e contudo transparentes;

 

o triunfo cruel das tuas pernas,

colunas em repouso se anoitece;

o peito raso, claro, feito água;

a boca sossegada onde apetece

 

navegar ou cantar, simplesmente ser

a cor dum fruto, o peso duma flor;

as palavras mordendo a solidão,

atravessadas de alegria e de terror;

 

são a grande razão, a única razão.

Eugénio de Andrade, Doze Poemas

 

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07
Mar 16

GREEN GOD

Trazia consigo a graça

das fontes quando anoitece.

Era o corpo como um rio

em sereno desafio

com as margens quando desce.

 

Andava como quem passa

sem ter tempo de parar.

Ervas nasciam dos passos,

cresciam troncos dos braços

quando os erguia no ar.

 

Sorria como quem dança.

E desfolhava ao dançar

o corpo, que lhe tremia

num ritmo que ele sabia

que os deuses devem usar.

 

E seguia o seu caminho,

porque era um deus que passava.

Alheio a tudo o que via,

enleado na melodia

duma flauta que tocava.

 

Eugénio de Andrade, 12 Poemas (1995)

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27
Fev 16

CANTIGA

Grã coita tenho sofrido

Por homem que desdenhei

Que sempre seja sabido

Quanto o amo e amarei.

É-me agora fementido

Por amor que eu recusava.

E doida eu 'stava em vestido

Ou se nua me deitava.

 

Ai quero ao meu cavaleiro

Apertar às tetas brancas!

O corpo dou-lh'eu inteiro,

Cavalgará minhas ancas!

Ca lh'estou mais que rendida

Flora o foi de Brancaflor,

É todo seu meu amor,

Minh'alma, os olhos e a vida.

 

Ai meu amigo velido!

S'em meu poder vos tomar

E convosco me deitar

E d'amor eu vos beijar,

Não há nenhum mor prazer

Que vos ter com'a marido,

Se de vós for prometido

Fazerdes quant'eu quiser.

 

Béatrix de Viennois, Condessa de Die,

in Jorge de Sena, Poesia de 26 Séculos

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03
Fev 15

CONVERSÃO

Descuidado andava no bosque do vale

No tempo dos jacintos,

Até que a beleza como um pano perfumado

Que me cobrisse me estrangulou. Fui amarrado,

imóvel e sem poder respirar,

Pelo encanto que era o eunuco dela.

E agora eis que entro no rio final

Ignominiosamente, num saco, sem ruído,

Como qualquer turco no Bósforo que espreitasse o harém.

 

T. E. Hulme,

in Jorge de Sena, Poesia do Século XX (1978)

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