13
Abr 11

PERGUNTAS

Tenho sempre, na algibeira da noite,
algumas vigorosas perguntas de reserva,
prontas a disparar em legítima defesa
contra o negrume.

Algumas são pequeninas, vulgares
aspectos de pormenor.
Outras, pelo contrário, são enormes,
desabridas como a boca dum forno --
do género, porque é que deste quatro,
e não seis, ou oito, pernas à rã.

Hoje ocorre-me fazer a menor de todas:
se foste tu que fabricaste o tempo
e a ele nos acorrentaste?
e com que barro? e com que raio
de segunda intenção?

Se é que não foi apenas por descuido.
Ou até casualmente, como acontece às vezes
ao cientista que faz experiências
e acaba por descobrir seja o que for.

A. M. Pires Cabral
publicado por RAA às 14:20 | comentar | favorito
01
Abr 11

GESTOS DE RECURSO

Quando um dia -- é fatal --
pousar sobre os meus ombros
aquele assíduo, rigoroso abutre
que voa sem rumor em círculos cautos
como a tirar as medidas do meu corpo --

saibam todos que para esse tempo
tenho ainda alguns gestos de recurso
(que não revelo), com que espero
morrer mais comodamente.

A. M. Pires Cabral
publicado por RAA às 16:54 | comentar | favorito
24
Mar 11

Degradação

Toda a gente foi domingo
alguma vez.

Depois nas fezes aparecem
sinais de sangue, ou na urina.
Declaram-se abcessos,
coágulos, tumores.

Passam então a ser uma sombria,
pesada, intransitiva
segunda-feira.

A. M. Pires Cabral
publicado por RAA às 15:44 | comentar | favorito
16
Mar 11

Velha entrevada

Aquele que não conhece a doença
nem o progresso nem o desfecho dela
mal saberá que mal alumiado
poço de angústias é uma velha entrevada
disposta em cama de palha
que não lhe retarda -- antes fomenta --
a podridão,

na esperança e no terror
de que tudo acabe em breve.

A. M. Pires Cabral
publicado por RAA às 10:58 | comentar | favorito
05
Nov 10

A ANDORINHA OU TUDO É RELATIVO

Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.

Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.

A. M. Pires Cabral
publicado por RAA às 15:53 | comentar | favorito
07
Set 10

O DETRITO DAS ÁGUAS

Neste local,
o rio avoluma-se inesperadamente.
Alarga-se, alaga
terras que deram milho, casas onde
a fome se amontoou
e foram gerados filhos.

Sobre tudo isso o Douro deposita
o detrito das águas.

Cujo peso sujeita lá em baixo
baixios que perderam a validade.

A. M. Pires Cabral
publicado por RAA às 23:17 | comentar | favorito
15
Ago 10

BALANÇA DE PALAVRAS

As palavras têm um tranquilo
peso oculto,
rebelde ao dicionário.

Por isso são palavras,
não vocábulos apenas.

Fossem todas as palavras
pesadas em balança como a sua,
Eugénio,
tumultuosa balança de palavras.

A. M. Pires Cabral
publicado por RAA às 19:48 | comentar | favorito