27
Dez 15

ROMANCE

Por noite velha, truz truz,

Bateram à minha porta.

-- De onde vens, ó minha alma?

-- Venho morta, quase morta.

Já eu mal a conhecia,

De tão mudada que vinha;

Trazia todas quebradas

Suas asas de andorinha.

Mandei-lhe fazer a ceia,

Do melhor manjar que havia.

-- De onde vens, ó minha alma,

Que já mal te conhecia?

Mas a minha alma, calada,

Olhava e eu não respondia;

E nos seus formosos olhos

Quantas tristezas havia!

Mandei-lhe fazer a cama

Da melhor roupa que tinha

«Por cima damasco roxo

Por baixo cambraia fina».

-- Dorme, dorme ó minha alma,

Dorme e, para te embalar,

A boca me está cantando

Com vontade de chorar.

 

Afonso Lopes Vieira, Ilhas de Bruma (1917) /

/ Cabral do nascimento, Líricas Portuguesas. 2.ª séria)

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25
Dez 15

AOS CABELOS DE INÊS

Vejo-os tão vivos como a luz do dia,

Os cabelos de Inês, delgado oiro

Do amado tesoiro loiro

Que sob os grandes beijos refulgia.

 

Raios de fina luz, adormeceram

Com saudades dos beijos que lhe deram

Os beilos do seu grande Namorado;

Raios de fina luz, adormeceram

No silêncio do túmulo dormente,

E com seu vivo lume resplendente

Todo por dentro o hão iluminado...

 

Adormeceram no silêncio fundo

Onde faziam luar;

E cuidavam apenas cordar

Para o antigo amor -- no fundo do mundo !

 

Mas vieram à luz do claro dia,

Dorido oiro

Do tesoiro loiro

E resplendente

Que sob os grandes beijos refulgia

Da boca amorosa e ansiosa

E saudosa, eternamente!

 

Oiro tão loiro e tão doce,

De Amada, Santa e Rainha...

-- Não serão os de Iseu, que uma andorinha

Por maravilha no biquinho trouxe?

 

Afosno Lopes Vieira, Ilhas de Bruma (1917) /

Líricas Portuguesas 2.ª série (ed. de Cabral do Nascimento)

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07
Jan 12

Animais Nossos Amigos

autor: Afonso Lopes Vieira (Leiria, 26.I.1878 -- Lisboa, 1946)   
título: Animais Nossos Amigos
ilustrações: Raul Lino
editora: Livros Cotovia
local: Lisboa
ano: 1992 (1.ª edição, Livraria Ferreira, Lisboa, 1911)
págs.: 81
dimensões: 2415,1x0,5 cm. (brochado)
impressão: Tipografia Guerra, Viseu
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07
Dez 11

INÊS DE LEIRIA

Encontrou Fernão Mendes

No interior da China

(E em que apuros ele ia!)

A velha portuguesa,

Chamada Inês de Leiria,

Que de repente reza:

Padre Nosso que estais nos céus...

Era de português o que sabia.

 

Ouvindo Fernão Mendes

Esta voz que soava

(Fernão cativo e cheio de tristeza!)

O português sorria...

Padre Nosso, que estais nos céus...

A velha mais não sabia,

Mas bastava.

 

Boa Inês de Leiria,

Cara patrícia minha,

Embora te fizesse

A aventura imortal

De Portugal

Chinesa muito mais que portuguesa,

-- Pois por esse sorriso de Fernão

Tocas-me o coração.

 

Deste-lhe em tal ensejo,

Entre as misérias da viagem,

O mais gostoso e saboroso beijo

-- O da Linguagem!

 

Afonso Lopes Vieira

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01
Out 10

SINOS AO LONGE

Chegam de longe
Vindas na aragem,
Imagens débeis
De bronzes finos...
E, cristalinas,
Pousam na aragem,
Na aragem vaga,
Flébeis e finas,
Como essas penas
No ar, serenas,
Que o ar afaga
Só de ampará-las
E suspendê-las.
Expiram longe,
Ida na aragem,
Imagens débeis
De bronzes finos,
De coisas flébeis...

Afonso Lopes Vieira
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06
Set 10

ROSAS SEM ESPINHOS

Esta rosinha de Assis,
sem espinhos, que eu de lá trouxe,
murcha, luminosa e doce,
no seu leve aroma diz:
-- Uma vez tentado foi

o Santo pla carne inquieta;
eis que o desejo lhe dói
numa agonia secreta.


E com a sede dos beijos
e dos ardentes carinhos,
arroja o corpo em desejos
às rosas cheias de espinhos!


Mas nós, quando então o temos
no abraço deste rosal,
os espinhos recolhemos
para lhe não fazer mal.




Afonso Lopes Vieira
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