02
Jul 11

Rua

autor: Alberto de Serpa (Porto, 1906-1992)
título: Rua
subtítulo: Poemas
editora: Editorial Inquérito
local: Lisboa
ano: 1945
págs.: 100
dimensões: 19x15x1,9 cm. (brochado)
capa: autor não identificado
impressão: Imprensa Libânio da Silva, Lisboa
publicado por RAA às 23:15 | comentar | favorito
08
Fev 11

PARAGEM

Estou numa encruzilhada.

Tenho um caminho na frente,
E os meus dois braços abertos
Indicam mais dois caminhos.

Se eu soubesse qual dos três
Caminhos é o meu caminho!

Talvez o que vem bater
No meu peito e nos meus olhos...

Talvez aquele que vem
Apertar a minha mão...

Talvez o outro, -- quem sabe?

Dentro de mim, uma voz
Diz-me que só um caminho
Merecerá os meus passos.

Não me diz, porém, qual é.

E, para não perder tempo,
E dar passos escusados
Deixo o tempo ir passando...

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 14:16 | comentar | ver comentários (4) | favorito
30
Nov 10

RECREIO

Na claridade da manhã primaveril,
Ao lado da brancura lavada da escola,
As crianças confraternizam com a alegria das aves...

A mão doce do vento afaga-lhes os cabelos,
E o sol abre-lhes rosas nas faces saudáveis
-- Um sol discreto que se esconde às vezes entre nuvens brancas...

As meninas dançam de roda e cantam
As suas cantigas simples, de sentido obscuro e incerto,
Acompanhadas de gestos senhoris e graves.

Os rapazes correm sem tino e travam lutas,
Gritam entusiasmados o amor espontâneo à vida,
A vida que vai chegando despercebida e breve...

E a jovem mestra olha todos enlevadamente,
Com um sorriso misterioso nos lábios tristes...

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 17:12 | comentar | favorito
24
Nov 10

EXPERIÊNCIA

Nas noites negras para roubos, chuvas, ventos,
E nas noites quentes em que o luar abafava as estrelas,
À hora de os sonhos baixarem vagarosos do céu,
Alguém dobrava com uma ordem doce os meus joelhos,
Juntava as minhas mãos inocentes e fracas,
E eu rezava como se repetisse uma canção.
E o meu sono era sempre sob a guarda de estrelas...

É a vida, agora, quem dobra os meus joelhos cansados
Que guardam a marca das pedras mais rugosas,
É a angústia da vida quem junta as minhas mãos,
As minhas mãos mais fracas e incertas.
Soltam-se da minha alma orações desesperadas,
Orações que as tristezas e os dias compõem.
Se no céu há estrelas, estão lá em cima e só brilham...

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 15:21 | comentar | favorito
29
Out 10

INTERFERÊNCIA

                                                                                                                                                                                                               A CECÍLIA MEIRELES

Quem veio bater à minha porta? quem?
Quem me fez abrir a janela e a noite morta?

O caminho estava deserto e o seu silêncio tinha horas.
Vento? Esta noite tem a paz e o sossego da morte.
Só eu e as estrelas sentíamos a solidão fantástica...

Nos ouvidos e na ansiedade guardei o rumor que me chamou,
As minhas mãos tiveram a carícia doutras mãos perdidas,
E uma companhia invisível acendeu uma luz na minha alma...

Alguém terá pensado em mim, longe?

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 15:40 | comentar | favorito
28
Out 10

PERDIÇÃO

                                                                                                                                                                                                        A MANUELA PORTO

Prazer de caminhar assim anónimo, sem rumo,
Sob a chuva miúda que põe reflexos na calçada,
Sentindo cair a noite outonal sobre a cidade...

As luzes dos carros que passam velozes,
As luzes das montras por que passam os vultos,
Fazem sombras secretas em quem vai e em quem vem...
É-se apenas um vulto que passa na noite que desce...
A nossa vida esquece e vai
Como uma folha dessas que o vento leva... -- para onde?...

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 11:06 | comentar | favorito
19
Ago 10

POEMAS DUM CREPÚSCULO

II

Na calmaria da tarde,
Que faz tudo prolongar-se,
Vem até mim mansamente
O embalo triste do mar...

Mar para fazer saudade
Em quem fica e em quem parte...
Mar para dar morte -- morte!...
A quem lá vai buscar vida...

Mar para toda a loucura,
Voz a chamar suicidas...

Balanço nos meus ouvidos,
Ritmo para um verso manso...

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 17:39 | comentar | favorito
18
Ago 10

MAR MORTO

A JORGE AMADO

A noite caiu sobre o cais, sobre o mar, sobre mim.

As ondas fracas contra o molhe são vozes calmas de afogados.
O luar marca uma estrada clara e macia nas águas,
Mas os barcos que saem podem procurar mais a noite,
E com as suas luzes vão pôr mais estrelas além.
O vento foi para outros cais levar o medo,
E as mulheres que vêm dizer adeus e cantar
Hoje sabem canções com mais esperança,
Canções mais fortes que a ressaca,
Canções sem pausas onde passe uma sombra da morte.
Velhos marítimos, para quem a terra é já a sua terra,
Olham o mar mais distante e têm maior saudade.
Pára o rumor duns remos.
Não vão mais às estrelas as canções com noite, amor e morte...

Penso em todos os que foram e andam no mar,
Em todos os que ficam e andam no mar também,
E a luz do farol, lá longe, diz talvez...

Alberto de Serpa
publicado por RAA às 15:05 | comentar | favorito