28
Mar 16

CANÇÃO DE OUTONO

Ritmo de soluços

Tem esta triste canção

Na aparência toda calma;

É que sobe à minha boca

O que trago na minha alma.

 

É hoje que tenho penas.

-- As mesmas que sempre tive --

Assim lembrando-as a fundo

Sinto que a vida

Me sustem no meu declive...

 

 

Cantando, a gente, amortece

A mágoa maior que seja.

É como beijar a boca

Dalguém que também nos beija.

 

Coração -- pobre erradio,

Quando acabas de cantar?

-- Acaba, que tenho frio...

Dir-se-ia que vai nevar...

 

António Botto

in presença 20,

Coimbra, 1929

 

 

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21
Fev 13

CANTIGA DE EMBALAR

Faz ó-ó meu pequenino

-- Anda lá fora um rumor...

Voz do mar ou voz do vento?!

Faz ó-ó...

-- Seja quem for!

 

Vejo as estrelas brilhando

Através dessa vidraça.

Sinto-me triste, mais só...

E a minha voz vai cantando

-- Ó-ó... Ó-ó

 

António Botto

(in Maria de Lourdes Varanda & Maria Manuel Santos,

Poetas de Hoje e de Ontem -- Do Século XIII ao XXI -- Para os Mais Novos)

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30
Jan 13

CINCO RÉIS DE GENTE

Cinco réis de gente

Vai sempre na frente

Dos outros que vão

Cedo para a escola;

Corpinho delgado,

Olhar mariola,

-- Belos os cabelos,

Quantos caracóis!

Mas as mangas rotas

Nos dois cotovelos

São de andar no chão

Atrás do novelos!

Nos olhos dois sóis

Que alumiam tudo!

A mãe, tecedeira,

Perdeu o marido,

Mas vive encantada

Para o seu miúdo.

 

António Botto

in Maria de Lourdes Varanda e Maria Nauela Santos,

Poetas de Hoje e de Ontem -- Do Século XIII ao XXI para os Mais Novos

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29
Jun 11

CANÇÃO

A nuvem que passa,
O sorriso que flutua,
Tudo
Quanto intensamente vive, --
O que é eterno e o que é frágil,
-- Detalhe de arquitectura,
Pedaço de céu,
Tudo,
Tem no espelho o mesmo peso,
O mesmo valor,
E a mesma realidade.

Anoitece nos meus olhos.

-- Se vens falar-me de amor,
vê lá bem se isso é verdade.

António Botto
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27
Mar 11

CANÇÃO

Vem surgindo a madrugada.
Entro agora num dancing.

Numa guitarra que tange
Oiço a mágoa do meu sonho.

Há vestígios de batalha:
Nódoas de vinho,
E alguns pratos
Com restos de carne, -- e o cheiro
A tabaco e a febre e a flores
Paira
Na sala como um cansaço...

Triste,
Vou lembrando os meus amores.

Além,
Naquela mesa do fundo,
Naquela mesa redonda,
Um homem
Descasca uma tangerina
E vai beijando e mordendo
A mulher franzina e feia
Que ao pé dele fuma e sorri...

Vou lembrando os meus amores!

E até me lembro
Daqueles
Que partiram para sempre...

--Mas, não me lembro de ti.

António Botto 
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03
Jan 11

PALAVRAS DUM AVESTRUZ TODO GRIS

Arrancaram-me as penas
E eu sofro sem dizer nada:
-- Sou ave
Bem educada.

E, se quisesse,
Podia
Morder-lhes as mãos morenas
A esses
Que sem piedade
Me roubaram estas penas que me cobrem;

E, no entanto,
Sem o mais breve gemido,
O meu corpo
Vai ficando
Desguarnecido.

E elas,
Aquelas
Que se enfeitam, doidamente,
Com estas penas formosas
-- Que são minhas! --
Passam por mim, desdenhosas,
Em gargalhadas mesquinhas.

Sim, eu sofro sem dizer nada:
-- Sou ave
Bem educada.

António Botto
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31
Dez 10

CANÇÃO SOBRE UM ETERNO MOTIVO

ao MANUEL MENDES

Sentado à minha varanda,
Contemplo a noite que desce
E a rosa
Que puseste no meu peito.

E, largo tempo,
Ficando silencioso,
Oiço uma voz que me fala...

-- Que voz é esta,
Tão incisiva, tão pura,
Que me pede que acredite
E tenha fé no destino?

Inclino a fronte, -- medito
No altíssimo desejo 
Que anda comigo
E sobe a cada momento!

Nas ramas do arvoredo,
O vento,
Passando, diz qualquer coisa.

A sombra cai,
De repente, volumosa.

Mal distingo as minhas mãos.

E ao pé de mim
Tomba o corpo
Fino e frágil dessa rosa...

          Londres,
          Março 1927


António Botto
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18
Nov 09

IRONIA

Se a noite fosse mais negra,
--Quero dizer, mais sombria!,
Agora que me encontraste
E que me dás o teu braço
Para falarmos, de novo,
No que dissemos, um dia!...
Se a noite fosse mais negra!,
E se as estrelas brilhassem
Com menos intensidade,
Sim, não duvides, eu diria...,
-- Mas não me fites assim!
Diria que és o meu sonho
E a minha realidade.
Mas esta luz que se entorna
Intimida o meu sentir
E fico, mudo, a sofrer...
--Também a gente nunca sabe
Se a verdade no amor
Se deve calar ou dizer.

António Botto
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