27
Fev 12

OS MEDRONHEIROS

Nos braços verdes, nus,

pousou um bando,

verde, leve,

d'asas glaucas

anunciando

o ocaso do inverno,

Cavalgada de Niebelungos que no longe se perde.

 

No estio,

o arnês,

do sol

se desfez

num chuveiro 

d'oiro mole;

em cada gomo

-- um bago d'oiro

a tentar-me!

 

Quem me dera,

medronheiro,

como tu,

dar um fruto

que pudesse embriagar-me!

 

Escuto,

das seivas o corpo ébrio,

todo nu,

bailando no silêncio

rumoroso da floresta,

onde o vento canta

-- a eterna canção da gesta.

 

Os medronhos,

um a um,

vão caindo,

terminou o festim.

Nas taça, o vinho,

já tem sono,

já tem sonhos de mim.

 

E o outono,

pelo oiro do caminho,

vindo,

vem bailando

na dança-dos-véus,

dança das névoas.

 

Terminou o festim.

Principia a saturnália das folhas mortas.

 

António de Navarro

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06
Mar 11

CRÂNIO

          AO JOSÉ RÉGIO

Esmigalhem meu crânio e que as legiões
passem sobre ele; e que um novo Átila renasça
e passe também sobre ele; ou que ele seja a taça
que mitigue a sede aos que tenham sede, seja

do que for, e que toda a treva nele se afunde
e o mundo, quando for maior, caiba também
dentro dele, e que ele seja o mal e seja o bem
-- strutura universal onde tudo se funde.

A alma de Baudelaire, sedenta, beba por
ele absinto e a de Giles de Rai -- oh! beba sangue.
Salomé, Taïs, ou Safo, os filtros do amor

e da morte. Que dentro dele o Universo é
mesquinho e Deus, meu Deus!, não tens força, és exangue
para nas mãos o teres com unção e com fé.

António de Navarro
publicado por RAA às 16:44 | comentar | ver comentários (2) | favorito
05
Jan 11

...

Uma nota solta
De não sei que música
Vagueia flor em flor
Como abelha de som.

Não lhe sei a cor,
Não lhe sei o tom,
-- Deve ser esquiva e nívea
E faltar com certeza

Ao compositor e poeta
Que sonhou a perfeição
E a beleza
Sem mácula, que lhe adoece
De a buscar o coração.

Ah, se ela quisesse
Aninhar-se na minha alma!...

António de Navarro 
publicado por RAA às 11:36 | comentar | favorito
30
Nov 10

...

Fica o passar do tempo na paisagem
-- fica numa folha que passa
e seca
tomba...

Fica numa sombra
a completar a imagem
da eternidade.

António de Navarro
publicado por RAA às 14:41 | comentar | favorito
07
Out 10

...

Donde vem o luar?!
Do sol
que tomba?

Da luz sombria do meu olhar!

A luz foi sempre um girassol
de sombra.

António de Navarro
publicado por RAA às 17:03 | comentar | favorito
12
Set 10

CANÇÃO

Ânfora, gomil
por que bebo fel e mel,
és tu,
amor meu;
e o filtro que adormeceu
num sonho d'ópio subtil,
desentranhado do núbil perfil
do teu corpo nu,
és inda tu,
amor meu!
O meu espelho de cristal,
emoldurado a marfim e prata
lavrada
por um artista gentil
como Cellini,
ficou quebrado,
ora vê lá tu,
ao reflectir a escarlata
dos teus lábios de rubi,
e a sombra maga do perfil alado
de graça do teu corpo esguio e nu,
e lindo!
Ora vê lá tu;
eu jamais tal vi,
e jamais vejo,
amor meu,
ânfora por que bebo
o mais amargo fel
do mais doce, do mais impossível desejo.

António de Navarro

publicado por RAA às 20:47 | comentar | favorito