25
Jun 12

CLAUSTRO

     Apago a luz. De que me vale? Há luzes na rua, há luas no céu, há quanto não são os outros e quanto são os outros -- e sou Eu.

     Na parede branca abriu-se a grade duma prisão: o caixilho da janela desenhado pela luz que vem de fora.

     Volto a acender a luz. E penso: o melhor é não apagar as luzes, não desviar os olhos: olhar e sorrir com mágoa sempre igual e agradecimento sempre maior.

 

António Madeira

(Branquinho da Fonseca)

publicado por RAA às 01:59 | comentar | favorito
02
Jun 12

AS VIAGENS

     Antes que seja afastado do que já alcancei que o seja daquilo para que vou. A posse é um declínio.

     Antes um pássaro a voar que dois na mão. Dois pássaros na mão são o que já não falta. Um pássaro a voar: é ir com os olhos a voar com ele; ir sobre os montes, sobre os rios, sobre os mares; dar a volta ao mundo e continuar; é ter um motivo de viver -- é não ter chegado ainda!

 

António Madeira (Branquinho da Fonseca)

publicado por RAA às 01:41 | comentar | favorito
10
Set 11

ESCURIDÃO

Vou pensando em viver. Entre-tem-me. Se algum dia até isto me voar, fecho as portas e as janelas, apago a luz e deito-me no chão a um canto.

António Madeira
[Branquinho da Fonseca]
publicado por RAA às 16:21 | comentar | favorito
27
Ago 11

CONVICÇÃO

Cai a tarde, cai a noite...
As sombras erguem-se do chão, fazem danças, contra-danças, rondas, ciladas.
As luzes da Câmara Municipal, presas aos fios que as vivem, guardam-nas e elas dançam-lhes de roda.
Eu passo; mas não passo como uma sombra: sou eu. Tenho um cartão de identidade e fatos por medida.

António Madeira
(Branquinho da Fonseca)
publicado por RAA às 23:58 | comentar | favorito
16
Ago 11

PIRATARIA

     Antigamente embarquei para a Índia.
     Mas quando a estrela não é boa já se não volta a Lisboa nem se lá chega, também. Os marinheiros revoltaram-se e abandonaram-me nesta ilha deserta em que só há macacos e bananas.
     Cego a olhar o mar, esperando que passe um navio que me regresse à Pátria.

António Madeira
[Branquinho da Fonseca]
publicado por RAA às 11:08 | comentar | favorito
23
Jul 11

GEOGRAFIA

Quem sobe há-de descer e quem desce há-de subir. Não se sobe eternamente, nem se desce eternamente -- porque o mundo é redondo.

António Madeira
[Branquinho da Fonseca]
publicado por RAA às 22:59 | comentar | favorito
09
Abr 11

LEN-GA-LEN-GA

Um sol que num céu se expande,
um sol pra que o céu é grande

O mundo a andar-lhe de roda,
o mundo com a gente toda.

Que infantil isto seria
se não fosse a astronomia!

Mas demonstra-se e acredito,
porque é simples e bonito.

Duvido, mas só o digo
mais que fechado comigo.

Tudo acredito e duvido;
tudo foi ganho e perdido.

Porque o tempo não começa
onde temos na cabeça.

Ah! que reinos haveria
antes desta dinastia!

A nossa imaginação
é o tormento dum condão.

Mas tudo isto já o disse
cher Monsieur De La Palisse,

E sem adormecimentos,
abandonos, desalentos...

Lenta, longa lengalenga...
lassa arenga... que molenga!...

Branquinho da Fonseca
publicado por RAA às 16:52 | comentar | favorito
01
Fev 11

ROTEIRO DO NOVO-MUNDO

Com duas tábuas fiz
O barco onde navego
E onde sou tão feliz
Que nunca chego.

Meço a altura do sol, fico a sabê-la
Queimando a carne e a vista,
E à noite olho uma estrela
Que já talvez não exista.

Branquinho da Fonseca
publicado por RAA às 16:32 | comentar | ver comentários (4) | favorito
10
Dez 10

COSMORAMA

Reina a lua nos pauis
onde o céu se vem mirar...
E eu tenho os olhos azuis
de sonhar a olhar o mar!...

Vai um navio a subir
entre as ondas... Ao chegar
lá ao céu, hei-de sorrir
alegrias de emigrar!...

Navios do fumo alvo
que faz as nuvens do céu,
dos vossos naufrágios salvo
sempre alguém que lá morreu!

Mas no céu, subitamente
naufragais, ides viajar
quantos mares fiquem na frente:
-- caminho de regressar...

Branquinho da Fonseca
publicado por RAA às 22:02 | comentar | favorito
05
Dez 10

OCEÂNIAS

Ondas do mar me deitaram
sobre o calor das areias
que ao meu corpo se moldaram
pra aquecer as minhas veias.

E aquele corpo de escrava
dando-me força a vencia
pelo gozo que me dava
para o gozo que sofria.

A noite vinha a descer
e subia a maré-cheia...
Eu já tinha o meu poder:
fugi à praia, deixei-a.

Foi assim que regressei
das conquistas do mar bravo,
e ergui palácios de rei
sobre refúgios de escravo.

Branquinho da Fonseca
publicado por RAA às 23:24 | comentar | favorito