14
Out 16

AURORA

O poeta ia bêbedo no bonde.

O dia nascia atrás dos quintais.

As pensões alegres dormiam tristíssimas.

As casas também iam bêbedas.

 

Tudo era irreparável.

Ninguém sabia que o mundo ia acabar

(apenas uma criança percebeu mas ficou calada),

que o mundo ia acabar às 7 e 45.

Últimos pensamentos! Últimos telegramas!

José, que colocava pronomes,

Helena, que amava os homens,

Sebastião, que se arruinava,

Artur, que não dizia nada,

embarcam para a eternidade.

 

O poeta está bêbedo,

mas escuta um apelo na aurora:

Vamos todos dançar

entre o bonde e a árvore?

 

Entre o bonde e a árvore

dançai, meus irmãos!

Embora sem música

dançai, meus irmãos!

Os filhos estão nascendo.

Com tamanha espontaneidade.

Como é maravilhoso o amor

(o amor e outros produtos).

Dançai, meus irmãos!

A morte virá depois

como um sacramento.

 

Carlos Drummond de Andrade, Brejo das Almas

publicado por RAA às 21:46 | comentar | favorito
12
Fev 16

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na hiustória.

 

Carlos Drummond de Andrade,

Alguma Poesia (1930)

publicado por RAA às 00:05 | comentar | favorito
31
Mai 12

POEMA DE SETE FACES

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

 

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

 

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

 

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.

 

Meu Deus, porque me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

 

Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, nãoseria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

 

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

 

Carlos Drummond de Andrade

publicado por RAA às 01:47 | comentar | favorito
05
Jan 12

NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida das minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra.

 

Carlos Drummond de Andrade

publicado por RAA às 11:24 | comentar | favorito
29
Nov 11

Brejo das Almas

autor: Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro, 31.X.1902 -- Rio de Janeiro, 1987)

título: Brejo das Almas

editora: Editora Record

local: Rio de Janeiro

ano: 2001 (1.ª ed., 1934)

págs.: 107

dimensões: 26,5x13,7x0,6 cm. (brochado)

impressão: Divisão Gráfica da Distribuidora Record

publicado por RAA às 00:33 | comentar | favorito
05
Jun 11

65 Anos de Poesia

autor: Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro, 31.X.1902 -- Rio de Janeiro, 17.VIII.1987)
título: 65 Anos de Poesia
antologiador: Arnaldo Saraiva
edição: 2.ª
editora: O Jornal
local: Lisboa
ano: 1989
págs.: 283
dimensões: 21x14,2x1,3 cm. (brochado)
capa: João Segurado
contracapa: foto de Luiz Augusto B. de Brito e Silva
impressão: Gráfica Europam, Mem Martins
obs.: no interior foto de Drummond e Saraiva (1966); o título da 1.ª edição é 60 Anos de Poesia (1985)
publicado por RAA às 23:34 | comentar | ver comentários (4) | favorito
11
Ago 10

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.

Carlos Drummond de Andrade
publicado por RAA às 16:22 | comentar | favorito
12
Jan 09

CONSOLO NA PRAIA

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te -- de vez -- nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade
publicado por RAA às 18:46 | comentar | favorito (1)