10
Set 12

AMOR

Amas demais... não possuis

o amor que todos têm.

Quem ama tudo não pode

ser amado por alguém.

 

O amor de tudo é ninguém

mas coração mais fecundo,

que por não saber beijar

só tarde conquista o mundo.

 

De longe o sol nos aquece,

de longe nos abre focos...

-- Ó cinco chagas de Cristo,

no espelho de misantropos!

 

Só é do Sol quem tem asas,

para um voo longo e leve...

-- quem antes que a luz o cegue

chega lá desfeito em brasas!

 

Edmundo de Bettencourt

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17
Jul 11

NEBULOSA

Certo passado audaz, revivo
apenas, sob um céu menos escuro:
se eu vivo para o futuro
quer dizer que já o vivo.

Futuro!
Quando te posso ver, por ti plena aurora,
condena-te a presença,
és este agora
que eu possuo
como a abelha suga a rosa;
e sem que o resto me importe...

Mas antes ou depois ver-te ou pensar-te
é ver uma nebulosa...
-- é como pensar na morte...

Edmundo de Bettencourt
publicado por RAA às 18:53 | comentar | favorito
03
Fev 11

CORO

2

Quem não quer morrer não sabe
que a Morte é mais preferida:
-- vive-se à custa da Morte...
-- morre-se à custa da Vida...

Edmundo de Bettencourt
publicado por RAA às 23:28 | comentar | ver comentários (2) | favorito
10
Dez 10

LEITURA

Havia luz em uns instantes surgidos
Na minha vida,
Que a mesma vida apagava;
E a pobre realidade era uma cinza...
...Já nada me recordava
Se, de entre ela uma faulha
Não me queimasse os sentidos.

O fogo das queimaduras
É dor que nunca me passa!
E é esta que me ressurge
Um pouco dessa luz-alma
De tantos momentos idos...

A inquieta luz sempre de agora
Que ao mundo nada desvenda,
A mim diz certa verdade,
A chã naturalidade
Nas coisas vãs da legenda.

Talvez ninguém me acredite,
E se ria,
Quando grave eu me recite;
Mas recitar-me, cantar,
Mesmo cansada a memória,
Teria de acontecer:
É comigo,
Bem viva enquanto eu viver
A minha inútil história...

Edmundo de Bettencourt
publicado por RAA às 16:40 | comentar | favorito
23
Out 10

VERDE

O verde tenro e vivo de folhagem,
presépio dos meus sonhos em menino,
pôs-se de luto a par com o meu destino,
cego-me a vê-lo imagem de miragem...

Quando iludido o busco na ramagem,
já com seus tons mais brandos não atino,
e nesta escuridão só me ilumino
vendo-o compor-me interior paisagem:

-- Paisagem doutro verde que de mim
sai alongada em foco para a terra
a procurar vencer-lhe a cerração,

E aonde num crepúsculo sem fim,
tonta, a Esperança esvoaçando, erra
sobre torres de encanto e de traição!

Edmundo de Bettencourt
publicado por RAA às 19:51 | comentar | favorito
29
Ago 10

PASSIVIDADE

Passividade suave e feiticeira
tentou-me, em tua boca mal pintada,
nos teus olhos azuis d'alucinada,
na estopa a rir da tua cabeleira.

Minha arte d'amar pelotiqueira,
deu fogo à tua carne inanimada,
tornando mais gentil e articulada
a boneca que fosses duma feira.

Levando ao ar um braço, eras adeus
a uma estranha mulher que em ti morrera
e cujo busto nu vejo entre véus...

E ao descerrares a acre flor da boca
a tua voz sonâmbula, de cera,
já era um eco d'alma em alma oca!

Coimbra, 1926

Edmundo de Bettencourt
publicado por RAA às 15:02 | comentar | favorito