16
Out 16

LITANIA

O teu rosto inclinado pelo vento;

a feroz brancura dos teus dentes;

as mãos, de certo modo, irresponsáveis,

e contudo sombrias, e contudo transparentes;

 

o triunfo cruel das tuas pernas,

colunas em repouso se anoitece;

o peito raso, claro, feito água;

a boca sossegada onde apetece

 

navegar ou cantar, simplesmente ser

a cor dum fruto, o peso duma flor;

as palavras mordendo a solidão,

atravessadas de alegria e de terror;

 

são a grande razão, a única razão.

Eugénio de Andrade, Doze Poemas

 

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09
Out 16

IN MEMORIAM

(F.G.L.)

 

Noite aberta.

A lua

tropeça nos juncos.

Que procura a lua?

 raiz do sangue?

Um rio onde durma?

A voz delirando

no olival, exangue?

Sonâmbulo,

que procura a lua?

O rosto de cal

que no rio flutua?

 

Eugénio de Andrade, Primeiros Poemas

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08
Mar 16

NOCTURNO

Noite,

noite velha

nos caminhos.

A lua no alto

fingindo-se cega.

Estrelas. Algumas

caíram ao rio.

As rãs

e as águas

estremecem de frio.

 

Eugénio de Andrade, Primeiros Poemas

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07
Mar 16

GREEN GOD

Trazia consigo a graça

das fontes quando anoitece.

Era o corpo como um rio

em sereno desafio

com as margens quando desce.

 

Andava como quem passa

sem ter tempo de parar.

Ervas nasciam dos passos,

cresciam troncos dos braços

quando os erguia no ar.

 

Sorria como quem dança.

E desfolhava ao dançar

o corpo, que lhe tremia

num ritmo que ele sabia

que os deuses devem usar.

 

E seguia o seu caminho,

porque era um deus que passava.

Alheio a tudo o que via,

enleado na melodia

duma flauta que tocava.

 

Eugénio de Andrade, 12 Poemas (1995)

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03
Jul 14

FRUTOS

Pêssegos, pêras, laranjas,

morangos, cerejas, figos,

maçãs, melão, melancia,

ó música de meus sentidos,

pura delícia da língua;

deixai-me agora falar

do fruto que me fascina,

pelo sabor, pela cor,

pelo aroma das sílabas:

tangerina, tangerina.

 

Eugénio de Andrade,

Poetas de Hoje e de Ontem --

do Século XIII ao XXI, para os mais novos

(Maria de Lourdes Varanda & Maria Manuela Santos)

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15
Mai 14

O INVERNO

Velho, velho, velho.

Chegou o Inverno.

 

Vem de sobretudo,

vem de cachecol,

o chão onde passa

parece um lençol.

 

Esqueceu as luvas

perto do fogão:

quando as procurou,

roubara-as um cão.

 

Com medo do frio,

encosta-se a nós:

dai-lhe café quente

senão perde a voz.

 

Velho, velho, velho.

Chegou o Inverno.

 

Eugénio de Andrade,

in Poetas de Hoje e de Ontem --

Do Século XIII ao XXI para os Mais Novos

(Maria de Lourdes Varanda e Maria Manuela Santos)

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04
Jun 13

CORAL

É um dos corais de Leipzig,

o quarto. Sem saber como, desceu ao chão

da alma. A música

é este abismo, esta queda

no escuro. Com o nosso corpo

tece a sua alegria,

faz a claridade

dos bosques com a nossa tristeza.

Pela sua mão conhecemos a sede,

o abandono, a morte. Mas também

o êxtase de estrela em estrela.

E a ressurreição.

 

Foz do Douro, 19.9.97

 

Eugénio de Andrade

in Relâmpago #2, 1998

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28
Fev 13

A PRIMEIRA NEVE

E depois, tão antiga a neve.

Só o lume a podia trazer

da fundura dos dias

 

a esta casa. Brancura estendida

em páginas lidas

a outra luz, dentro do sono.

 

Quase sem peso, sem nenhum

ruído -- vinda de outros céus,

outros caminhos.

 

A primeira neve. E tão antiga.

 

Foz do Douro, 13.2.97

 

Eugénio de Andrade

(in Relâmpago #2)

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11
Out 12

ANUNCIAÇÃO DA PRIMAVERA, 2

Não sei de onde vem esta bruma,

se dos meus olhos, se

do rio. Um sol frouxo, próprio

 

das manhãs de domingo, escurecia

o vermelho, o amarelo das casas.

Dentro de mim, a musical

 

floração das cerejeiras havia começado.

Noutro lugar, noutro dia.

E de repente começou a cantar

 

um pássaro inesperado, um ramo

que não havia, no céu tranquilo

onde a manhã total principia.

 

Foz do Douro, 20.3.96

 

Eugénio de Andrade

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12
Jul 12

É ASSIM, A MÚSICA

A música é assim: pergunta,

insiste na demorada interrogação

-- sobre o amor?, o mundo?, a vida?

Não sabemos, e nunca

nunca o saberemos.

Como se nada dissesse vai

afinal dizendo tudo.

Assim: fluindo, ardendo até ser

fulguração -- por fim

o branco silêncio do deserto.

Antes porém, como sílaba trémula,

volta a romper, ferir,

acariciar a mais longínqua das estrelas.

 

Beja, 18.7.97

 

Eugénio de Andrade

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