05
Set 18

ESTAR NA VIDA

Não sabemos bem a partir de que momento começamos a ter, não tanto a percepção da morte mas a noção de uma mudança na natureza da nossa existência, a perda da ilusão de energia que tinha sido a nossa, igual à do adolescente que entra na carruagem do metro e, cumprimentando outro com uma forte palamada da sua mão na dele, ignora a morte, mas ignora talvez também a vida, não sabe que está na vida.

 

Gastão Cruz, Existência (2017)

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02
Set 16

...

«Em poesia, a realidade não é outra coisa senão a linguagem que a produz.»

 

Gastão Cruz, A Poesia Portuguesa Hoje (1973; 2,ª ed., 1999)

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19
Mai 14

UM BARCO

Corre um barco no sulco do canal

mais longínquo da ria; enquanto passo

para o poema o seu percurso, faço

morrer a imagem branca que imortal

 

há pouco parecia; agora o espaço,

que da mancha mortal,  ponto de cal,

livre ficou, um troço é afinal

do ramo de água que na tarde traço,

 

a sucessão olhando de um e e outro

avulso braço da laguna fria,

e desfaço, no verso onde esse barco

 

naufragou quando quase ainda o via,

correndo e já ausente, breve potro,

na distância da água vivo rastro

 

Gastão Cruz,

in O Escritor #22

(Outubro 2007)

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06
Dez 13

NÓS O MUNDO

O mundo acabará quando não formos nós

o mundo: tudo existe

somente no olhar; gente passa

diante da esplanada no final de

julho quando ainda

os pulmões do verão inspiram o vapor

espesso do corpo como de alma um resíduo

e expiram o ar que seca o espírito:

este rodar de

gente e de estações

iludindo o sentido a que acedemos

devagar, tarde para

o conhecimento que poderia ter-nos

mudado a vida; prosseguimos

sem crença nessa via

olhando os corpos, sobretudo os

nossos plural que guarda

a dúvida de que a

extinção do corpo nos atinja

sozinhos, o mundo somos nós

di-lo a poesia recordando

os sentidos quando o mundo

perdiam, ou julgamos agora

que perdiam o que rapidamente

atravessava o desejo do dia: nada

o extingue, o desejo de que o fogo

a exacta metáfora seria, porém

não vou usá-la apagarei os

versos como um dia

os irá apagar o mundo reduzido

à minha consciência já vazia

 

Gastão Cruz,

A Moeda do Tempo (2006) /

/ O Escritor #22 (2007)

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07
Out 13

A MANHÃ

Esta manhã

hoje

é um nome

 

Fiama, Barcas Novas

 

 

É assim a manhã, um nome

para o mundo, abrir os olhos como

alguém que fala

Podem o tempo ou a

morte diurna

dar aos olhos abertos o nada das palavras

 

O sol será então

o silêncio no olhar ou na mão

sobre a testa

que faz descer as pálpebras

como se os dedos dessem à cabeça a verdade

submersa nesse nada

 

e a manhã viesse

não como sombra vasta vestir a voz

do corpo

mas cobri-la da

luz

das palavras que faltam

 

Gastão Cruz,

Rua de Portugal / O Escritor 22

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08
Jul 13

EM TEMPO ALHEIO

Peço desculpa de ser

o sobrevivente.

Drummond, As Impurezas do Branco

 

 

Demasiados mortos para a

minha memória

O dia está aí um projector nos rostos

que repetem

cenas, deslocando-se entre os móveis

polidos pelos anos e as árvores, com falas retardadas

Não há quem sobreviva a ninguém no cenário

são somente aparências o que está

e o que falta,

todos em cada um,

enquanto ausentes o habitam como casa

em tempo alheio

Deixastes toda a esperança vós que entrastes

na memória

 

Gastão Cruz,

Rua de Portugal / O Escritor #22

(Lisboa, 2007)

 

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13
Jun 13

O CORVO DE HYDE PARK (1989)

Com o bico levanta as folhas de setembro

Nos intervalos ouve a música dos pássaros

e volta a caminhar sobre a relva manchada

Pára de novo escuta e voa baixo

sobre o tapete verde e castanho do tempo

 

Gastão Cruz,

As Leis do Caos / O Escritor #22 (2007)

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19
Nov 11

NOCTURNO

É tão

estranha a paz

que não ter paz me traz (ouvir outrora

os Nocturnos a uma hora

como esta tão longe de tudo vendo embora

as luzes que se acendem nas

janelas em frente

bastaria

para que a nuvem da melancolia

sobre mim derramasse

a água sufocada)

como se, para sossegar, a vida

precisasse

de se sentir perdida.

 

Gastão Cruz

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30
Out 11

SINAL VERMELHO

No carro ao

lado alguém desconhecido

exibe o seu Record no tablier

Como eu partirá quando o apito

do incorruptível árbitro o expulsar

de vez

 

Gastão Cruz

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09
Out 11

ONTEM NA BOCA DO INFERNO

Ontem olhando o mar que penetrava

sob as escarpas num rumor difuso

de fim de primavera quando a brava

cratera do inverno esquece o uso

 

dado às águas, enquanto te escutava

como um vulcão de sentimento (escuso

falar-te do amor de que essa lava

de palavras mortais movia o fuso

 

nas nossas vidas oscilantes) vi

novamente na voragem no teu rosto

ao inferno descido O mar em ti

 

reflectia-se não como o reposto

equilíbrio das águas na estação

visível mas como água da paixão

 

Gastão Cruz

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