10
Fev 15

"Eu sabia por ela as estações»

Eu sabia por ela as estações

os esquilos os corvos as gaivotas.

Chegada a primavera abria os nós

em flores precipitadas e carnudas

de longas redondezas tacteantes

que batiam no vidro da janela.

Não dava fruto a minha castanheira

e na verdade não era sequer minha

ou só seria porque nos olhámos

cada manhã por mais de trinta anos.

Mas dava flores e esquilos e gaivotas

verão outono corvos primavera

sem contabilidades biológicas

doutras fertilidades transmissíveis.

Dava flores como se desse versos

sem precisar por isso de escrevê-los

como os amantes se amam num só corpo

sem ver onde um começa e o outro acaba

aberta toda em lábios vaginais

com uterinos longos falos brancos.

Também este ano floriu no tempo certo.

Mas o inverno chegou em plenas maias.

Disseram que a raiz rachou ao meio

que o centro do seu tronco estava oco

não percebiam como tinha flores.

Cortaram membro a membro a minha árvore

ficou só a raiz e o seu vazio

e sobre o campo em volta a neve quente

das suas flores perplexas

impossíveis.

 

Helder Macedo, Viagem de Inverno

 

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28
Jul 14

"Se havia corvos não sei"

Se havia corvos não sei

porque há metáforas

de que é prudente sempre duvidar.

 

Havia um galo de ferro

e o hotel

e o telhado onde fora um catavento.

 

Mas agora só grasnava

com a ferrugem

tolhido no seu corpo de aviário

libertado em simulacro.

 

Helder Macedo,

Viagem de Inverno

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18
Jun 14

"Os filhos dos mortos já não são irmãos"

Os filhos dos mortos já não são irmãos

na vida bifurcada de que sobram

 

e embora o que procria procriase

e aquele que foi amado amor criasse

 

os filhos dos mortos são corpos das sombras

que neles reproduziram quem não são.

 

Helder Macedo, Viagem de Inverno

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20
Nov 13

"Paguei a conta da viagem grátis"

Paguei a conta da viagem grátis

anos depois

a prestações com juros agravados

quando era já difícil recordar

para onde vim

e ao que vinha quando aqui cheguei.

 

Não sobra nunca muito a quem só chega

nem o regresso

que seria outro chegar ao não-lugar

que só existe no se ter deixado

e assim ficou

como um jardim coberto em selva escura.

 

Tenho ainda o recibo e a mala velha

onde trazia

o guia de turismo traduzido

da língua original que já esqueci

ou nunca soube

noutra língua também desconhecida.

 

Helder Macedo,

Viagem de Inverno

publicado por RAA às 13:22 | comentar | favorito
16
Jul 13

"Quis ver o rosto do nada"

Quis ver o rosto do nada

quando olhei

para ver quem me seguia

ou seguiria

enquanto não olhasse

a sombra indecifrada

desta não sei se selva

ou estrada

ou talvez praia

ou destino perdido no caminho

 

Helder Macedo,

Viagem de Inverno

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20
Jun 13

VIAGEM DE INVERNO

2

 

Um salto de raposa sobre a estrada

último sol à beira da fronteira.

Depois somente a sombra

duma lua diurna

a câmara dos ecos

e círculos de corvos sobre a neve.

 

Viagem de inverno

metáfora fechada deslizando

em espelho opaco

gotícula de sémen

pulsando sobre pele infecundada

contexto desconexo

 

viagem literalmente de inverno

literalmente viagem

por estradas escorrendo rios turvos

nas ondas congeladas das montanhas

com troncos encravados

mastros brancos de frotas soterradas

 

até que muito ao Leste

o hotel aberto

vazio e duvidoso

galo campestre em luxo desplumado

e onde o chefe já perdera a estrela

por exagero de maçã nos molhos.

 

Helder Macedo,

Viagem de Inverno

publicado por RAA às 13:47 | comentar | ver comentários (1) | favorito
20
Jun 11

...

Não o sol
que no ar se esquece e aquece
não a lua
que no lago se reflui
mas o frio
mas o vento.

Não o corpo
que com mortes se sustenta
não o rosto
que com rugas se remenda
mas a fonte
mas a vida.

Helder Macedo
publicado por RAA às 23:15 | comentar | favorito
10
Out 10

...

A meio do caminho
a mais de meia vida já vivida
reencontrei-me só na selva escura
da vida indecifrada
e não sei de que lado está a morte
e não sei se é o amor quem a sustenta
no tempo
que chegou
de destruir
para ver o que seja o que me sobra
no certo entendimento
de que as vidas são feitas
no perdê-las
ou nisso só existem
porque há vida somente quando há morte
e porque toda a selva
por mais cerrada e escura
contém o tempo já do seu deserto
na fértil luz difusa que a penetra
para nela executar o seu amor.

Helder  Macedo  
publicado por RAA às 17:50 | comentar | favorito
23
Jan 10

...

Chegaram os pacotes com as cartas
os retratos os mapas os papéis
o que sobrou dos gestos e das almas
sem excessivo valor comercial.

Os outros preferiram os dejectos
e lá se engalfinharam nas heranças
computando os seus lucros e rancores
mudando fechaduras e pretextos.

Há pessoas que morrem duas vezes.
Para a primeira morte estava pronta
na segunda ficou possessa de ódio
pois soubera morrer e não deixaram.

Mandou que preparassem dois enterros
um para cada morte e cada vida
o primeiro com flores maternais
no segundo desfez o corpo em cinza.

Vejo-a agora de novo nos retratos
a mãe menina segurando rosas
o braço comatoso a acalentar-me
o inverno a nascer da primavera.

Helder Macedo
publicado por RAA às 23:13 | comentar | favorito