07
Fev 16

"MInha mais querida"

Minha mais querida.

Mais do que nunca

é necessário 

amar.

Mas amar bem.

Amar muito.

Amar sempre mais.

Amar sim como só eu te amo.

Amar mais do que é preciso.

Amar muitas vezes desesperadamente.

Amar sempre tanto

tanto...

tanto...

tanto quase como quem delira.

 

Ou então meu amor

amar acima de tudo

e além de todos

mas amar sempre mais do que a raiva

mil vezes raivosa de quem na prisão

nos odeia!

 

José Craveirinha, Cela 1 (1980)

publicado por RAA às 23:50 | comentar | favorito
27
Fev 15

PRIMAVERA DE BALAS

Agarro

Na minha última humilhação

E sem ir embora da minha terra

Emigro para o Norte de Moçambique

Com uma primavera de balas ao ombro.

 

E lá

No Norte almoço raízes

Bebo restos de chuva onde bebem os bichos

No descanso em vez da minha primavera de balas

Pego no cabo da minha primavera de milhos

E faço machamba ou se for preciso

Rastejar sobre os cotovelos

E os joelhos

Rastejo.

 

Depois

 

Escondido em posição no meio do mato

Com a minha primavera de balas apontada

Faço desabrochar no dólman do sr. Capitão

As mais vermelhas flores florindo

O duro preço da nossa bela

Liberdade reconquistada

Aos tiros!

 

José Craveirinha,

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III

publicado por RAA às 18:04 | comentar | favorito
11
Abr 11

QUERO SER TAMBOR

Tambor está velho de gritar
Ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.

Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem azagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando como a canção da força e da vida
Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

José Craveirinha
publicado por RAA às 11:21 | comentar | favorito
30
Jan 11

...

Todo o poeta quando preso
é um refugiado livre no universo
de cada coração
na rua.

O chefe da polícia
de defesa de segurança do estado
sabe como se prende um suspeito
mas quanto ao resto
não sabe nada.

E nem desconfia.

José  Craveirinha
publicado por RAA às 19:40 | comentar | favorito
25
Jan 11

GRITO NEGRO

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
Mas eternamente não
Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!

José Craveirinha
publicado por RAA às 23:44 | comentar | favorito
09
Out 10

Obra Poética I

autor: José Craveirinha (Lourenço Marques [Maputo], 28.5.1922 -- 6.2.2003)
título: Obra Poética I
editora: Editorial Caminho
local: Lisboa
ano: 1999
págs: 223
dimensões: 21x14,8x1,3 cm. (brochado)
impressão: Tipografia Lousanense
tiragem: 3000
capa: José Serrão
obs.: inclui os livros Xigubo (1964) e Karingana ua Karingana (1974)
publicado por RAA às 01:27 | comentar | favorito
08
Set 10

AUSÊNCIA

Mais feliz do que eu
nossa mútua ausência
já não te dói.

José Craveirinha
publicado por RAA às 23:01 | comentar | favorito
13
Jul 10

MÃE

Minha Mãe:
Trago a resina das velhas árvores
da floresta nas minhas veias
e a sina de nascença
no meio das baladas à volta da fogueira
tu sabes como é sempre uma dor nova
sabes ou não sabes, minha Mãe?

Sabes ou não sabes
o mistério de olhos inflamados de macho
que um dia encontraste no teu caminho
de tombasana de pés descalços?

Sabes ou não sabes, Mãe
a resina das velhas árvores plantadas pelos espíritos
as blasfémias dos mortos salgando as raízes virgens
e as grandes luas de ansiedade esticando
... as peles dos tambores enraivecidos
e dando às folhas verdes das palmeiras
o brilho incandescente das catanas nuas?

E no sabor do encantamento, Mãe
dos nossos desenfeitiçados feitiços ancestrais
o exorcismo ingénuo das tuas missangas
o maravilhoso maheu das tuas canções
e o segredo do teu corpo possuído
mas de materno sangue inviolável
donde a minha sina nasceu.

No
espaço da tua sepultura de negra
sabes ou não sabes a verdade
agora sabes ou não sabes
minha Mãe?
publicado por RAA às 16:45 | comentar | favorito
16
Set 08

LATITUDE ZERO

E a nossa casa, Mãe
nosso lar de velhas paredes de caniço
já não está lá
no lugar onde o pai do pai do teu pai
ao sol e à chuva
em doze luas de trabalho
a construiu.

E no sítio da sua sepultura, Mãe
debaixo das mafurreiras de frutos de ouro
onde a bebida fermentava a missa de cocuana Matsinhe
pesam os muros de cimento
que o senhor das terras levantou
ao abrigo da lei da concessão de terrenos vagos
onde não existe ninguém
e só vivem negros
mulatinhos e negras.

Dentro das coordenadas geográficas
registadas numa planta do cadastro da circunscrição
dormes o teu sono perpétuo, Mãe
ao som das blasfémias que não chegaste a ouvir
mas gostarias de ouvir também contra eles
e querias também sentir contra eles minha Mãe.
E hoje que a nossa casa de paredes de caniço
e os trinta e cinco pés de mandioca
foram esmagados pelas lagartas de aço
do monstro Caterpillar do senhor concessionário
o secular desespero
planta milho que não nasce
e mapira que não cresce mas dói
na latitude zero do talhão de pedras e cobras
da reserva indígena onde moram blasfemos
nós o negros, os mulatinhos
e as negras.

José Craveirinha
publicado por RAA às 23:25 | comentar | favorito