05
Mar 11

SUPERMERCADO

Corre perigo a minha qualidade de vida
Pensei nisso maduramente no supermercado hoje
Sinto que a qualidade não é a mesma e foge
E que pouco falta para que fique perdida

Lembro-me do rio que passa na minha terra
Porque comparo a esta enorme porcaria
Em que se transformou a antiga alegria
De o atravessar num tempo sem paz nem guerra

E quando as crianças empurram os carrinhos
Com uma devoção espantosa pelos corredores
Eu recordo bem com todos os pormenores
As demoradas procissões com muitos anjinhos

E não havia iogurtes nem sequer supermercados
Nem demonstradoras empenhadas em demonstrar
Não os pontos fortes de quem lhes vai pagar
Mas que estão tão cansadas como nós cansados

Se a vida fosse lógica deveria muito tempo sobrar
Quando se fazem estas refeições congeladas
Porque o tempo que se ganha sendo preparadas
Deveria ser para parar um pouco e para pensar

José do  Carmo Francisco
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13
Fev 11

SANTO ANTÓNIO DOS CAVALEIROS

Um pequeno cais sem pedra nem saudade
Acaba num jardim de barcos a fingir
Num horizonte de fumo e de castanhas
Entre anúncios, collants e supermercados

(Não vinha ninguém nesta camioneta)
Minutos pesados se passaram entretanto
O néon dos anúncios do prédio em frente
Acorda-nos dum sonho já pouco perfeito

Outras camionetas vão encher o largo
Alguns indianos, chineses sem palavras
Misturam-se com moçambicanos perdidos
No metro que os engole tão pontualmente

E passam por nós casais quase exemplares
Cada um com um filho que dorme ao colo
E cada filho com o sono mais pesado
(Sem outra mão para os sacos de plástico)

Jornais velhos com notícias já perdidas
Chegam devagar aos pés de quem espera
O frio e o vento não perdoam no cais
E (sabemos) não é ainda esta a camioneta

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 13:47 | comentar | favorito
06
Fev 11

G. F. H.

E de novo me defronto consigo sem coragem
Repare que não estamos em Dublin
Nem este nevoeiro é o seu nesta manhã
Nem o disco reproduz totalmente a sua escrita.

Encolho-me nas definições de quem percebe
Cito Beethoven com facilidade mas não chega
E a sua perfeição não me provoca qualquer náusea
Antes me atrevo a repetir as audições

Se a perfeição existe você é então perfeito
Os sons arrumados na pauta são desenhos
E a realidade que retratam não existe
Apenas o seu mundo a compreende

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 17:43 | comentar | ver comentários (2) | favorito
15
Set 10

C.A.P.E.

Amo estas folhas todas dentro do dossier
Manuseio os telexes e as notas de débito
Como coisas minhas e familiares de mim
Sei que cada capa contém um mundo

As facturas ora explícitas ora pouco claras
São como pessoas e mentem muitas vezes
Tal como os certificados de origem
E mais grave ainda -- os conhecimentos de embarque

Por detrás de cada papel está uma pessoa
O maravilhoso é pensar nisso quando lhe pego
Amo profundamente estas capas cheias de papéis
E tudo o que elas representam todos os países

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 23:15 | comentar | favorito
03
Set 10

Universário

autor: José do Carmo Francisco (Caldas da Rainha, 1951)
título: Universário
edição: 1.ª
prefácio: J. O. Travanca-Rêgo
colecção: «Círculo de Poesia»
edição: Moraes Editores
local: Lisboa
ano: 1983
págs.: 68
dimensões: 20x15,5x0,6 (brochado)
fotocomposição e montagem: Linopazas
impressão: Moraes Editores
publicado por RAA às 23:41 | comentar | favorito
16
Jul 10

G. F. H.

E de novo me confronto consigo sem coragem
Repare que não estamos em Dublin
Nem este nevoeiro é o seu nesta manhã
Nem o disco reproduz totalmente a sua escrita.

Encolho-me nas definições de quem percebe
Cito Beethoven com facilidade mas não chega
E a sua perfeição não me provoca qualquer náusea
Antes me atrevo a repetir as audições

Se a perfeição existe você é então perfeito
Os sons arrumados na pauta são desenhos
E a realidade que retratam não existe
Apenas o seu mundo a compreende

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 14:24 | comentar | favorito
13
Jul 10

AMSTERDAM

Eu sabia que os telejornais acompanhavam o assunto,
a par e passo, a cores ou a preto e branco mas não
tinha tempo para ver televisão nem para comprar jornais.

Corria de museu para museu, ingenuamente procurava
apanhar um retrato vivo da cidade, comprava batatas
fritas na rua para não perder tempo em restaurantes
e nunca me cansava.

À noite tinha jazz, com muito sumo de laranja, quase
sempre no «Mistery Club» até à meia-noite e cinco,
pontualmente, para apanhar o último eléctrico com
destino a Amstel Station.

Quando cheguei e me perguntaram se tinha tido medo
dos terroristas fui obrigado a responder que não --
dos polícias, sim, tenho medo: São espantosamente
novos, louros, corpulentos e passeiam-se na rua
com a arrogância de quem se sabe impune.

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 12:08 | comentar | favorito
30
Ago 08

THE END

Morrer num hospital tem destas consequências;
o velório é mais pequeno do que se fosse em casa.
Além disso os brincos desapareceram de repente
e só pensamos no telefonema perdido -- o funeral que atrasa.

Deve ser triste imaginar estes passos todos
com a raiva de não poder vencer a distância
e por entre as lágrimas abundantes começar a recordar
as primeiras páginas da história doméstica -- a infância.

No fim de contas trata-se talvez só de aritmética
esta operação que se desenrola no cemitério:
a soma das lágrimas que todos nós choramos
é igual às que ela chorou por nós -- não há mistério.

E o monte que o coveiro lentamente vai cavando
tem para mim o sentido que o momento encerra:
é um pouco de mim que desce para esta cova
nas minhas palavras misturadas com a terra.

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 23:22 | comentar | favorito
16
Ago 08

BANCO DE TRÁS

Sábado à tarde, uma certa luz
Atravessa a rua no meio dos telhados
Retoques no carro, aguarrás no pincel
E o tricot no banco da frente, rápido

Domingo, o almoço em qualquer lugar
Longe daqui, desta tristeza sem voz
Mas o preço da gasolina sobe depressa
Cortando os domingos do mês, quase todos

No banco de trás o cão dorme
Sem fralda nem ternura como criança
Ficará só o beijinho da fotografia
Cão objecto que deitarão fora como cigarro

Ninguém rouba este automóvel nunca
A loucura é feita neste lugar
Cigarros, jornais, música e sono
Sempre na preguiça dos minutos

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 02:42 | comentar | favorito