09
Set 19

"Na frascaria das prateleiras altas,"

Na frascaria das prateleiras altas,

Na penumbra da sala,

Uns fetos em gosma floresciam pelo brilho da chapa em latim que os legendava.

Frascos de carniça caravaggesca.

Um crucifixo, verdete.

E um dístico que nos alivia.

(Quem chora a morte a cão que renasce?)

 

José Emílio-Nelson, A Festa do Asno (2005)

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18
Out 17

"Vestindo tão de luto como quando o enterraram,"

Vestindo tão de luto como quando o enterraram,

a Senhora que o conheceu dava generosa tristeza aos Cristos

alinhados como velas em bolo.

(Cristo de

noiva, a tradição.)

Imperfeitos uns, outros polidos, alguns mais corroídos.

Régio comprou por devoção, à dúzia, e vendeu-os bem.

 

Deus está atento, já

voltaram para ele,

para o seu nome.

 

José Emílio-Nelson, O Anjo Relicário (1999)

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21
Mar 17

"Nos corredores das lojas a passear, lá em cima,"

Nos corredores das lojas a passear, lá em cima,

arrasta um calçado encharcado,

um saco plástico que verte.

Quando lhe tocam, sujam-se,

mais rápidos caminham fazendo um esgar doentio.

Não tardará que o homem de farda lhe indique a

saída.

 

José  Emílio-Nelson, O Anjo Relicário (1999)

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14
Fev 16

"À porta do meu Banco no patamar, acocorados"

À porta do meu Banco no patamar, acocorados,

um e uma, vendem a pele

de uns pratos encardidos

mesmo no traço que já lhes deu flores garridas.

Eles escorriam chuva, que chovia, para a louça.

Eles nem devem ter sangue pela tez lustrosa

da porcelana dos seus olhos de caveira.

(Até faz rir, leitor, coisa tão triste.)

 

José Emílio-Nelson, O Anjo Relicário (1999)

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26
Ago 10

MAJESTIC CAFÉ

No Majestic meninos (e meninas)
Alargam orelhas
Inclinados no estuque.
Azedam natas.
Bebe-se café à chávena.

Majestic Café.

Vidro lapidado agreste
Incita à entrada
E dentro dos espelhos a cismar
Já não se cospe.
Cuspiu-se na latrina.
Mesmo assim gris
Do sopro saturado do café e
Das risadinhas das almas.

José Emílio-Nelson
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25
Ago 10

A BANHISTA

O cão afasta a onda
E o pêlo liso imita a foca.
Rebolava. Eriçava-se.
A banhista sorriu.
A bóia
Fugiu-lhe das mãos.

José Emílio-Nelson
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24
Ago 10

OPERA COMMEDIA

2

À entrada, na mesa polida,
O café frio, na chávena. Baloiça, treme, uma bela rapariga
Escreve num postal (com tanto espanto!)
As gatafunhas de ditongos, as vogais rasteiras
Que lemos primeiro no giz da sua pele,
Nos ossinhos dos dedos, tal o esgar.
É tão hamlética, agoirenta, dementada.
Todos a olham (entre os quadriz e o nariz).

José Emílio-Nelson
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23
Ago 10

DOMINGO NO BAIRRO

Passeia perto de casa o cão.
Encontro-o há anos no parque.
Num canteiro
Talvez culpa das rosas
O ar é todo urina.

José Emílio-Nelson
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05
Ago 10

...

Conheço o turismo dos cemitérios.
Que pouco importa a morte comendo a terra,
Já se ouviu dizer. A que vens?
Ao loureiro umbroso mais a purpúrea hera
A crescer para o céu fascista (de Pound).
À campa (de Morrison)
Aplanada, danificada,
Vigiado por polícias todos crentes
Na ressurreição dos mortos.

José Emílio-Nelson
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25
Jul 09

COMPOSIÇÃO COM ÁRVORES

Aquela ave do sol, e sol das aves, (Jerónimo Baía)

A árvore ainda árvore de sol
Rasga a pisada tela, sobressai régia,
Imprecisa, esfuma-se, rebuscada
Pungente e verdejante a réplica?
Amena a mão ao desenho oferece.
Laivos verdejantes a ampliar a árvore.
O risco incerto impõe a árvore triste.

A árvore alva, luzidia, perla
Na assombrosa descrição afinal calcário leve
De árdua escadaria, profana, disponível
A secura indistinta.
O largo ramo de luz entumecido.

A árvore ainda árvore selecta
Deslumbra ao mover-se da espessura
Da copa airosa o cone aceso (aceso de agreste).
Empobrece.

Rompe-se a cal constante
E de branca inventa a alvura.
Seca a árvore que aparece.

José Emílio-Nelson
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