06
Mai 15

MODERNA IDADE (CONVERSA INACABADA)

Havia cartas, alucinantes cartas

com o desespero dos homens dentro.

Dois homens dois: Paris / Lisboa; Hotel Nice

quarto interior por cima de uma leitaria;

maços de definitivos queimados junto

ao mata borrão; o Arco do Triunfo; os gases

da guerra, primeira dita a grande; a tradução

comercial no exacto inglês de quem morre

ferido talvez de desvairado exílio

no centro geométrico de si mesmo.

 

Dois homens ou mais em pessoa (Pessoa);

as cartas, irremediáveis cartas

cumprindo a distância que une as escritas,

separa os homens e o veneno lento de um

bagaço somado a uma fatal, total lucidez.

Ainda e sempre as cartas amarrando os homens

à demolidora narração deles próprios e todavia

à persistente busca da luz.

 

As cartas irrespondíveis, mas sempre

com resposta, dupla voz que conta,

fere, descarna e revela em papel timbrado

de escritório sombrio da baixa lisboeta

um ofício de chagas chamado: modernidade.

 

José Jorge Letria,

in Cadernos Despertar #1 (1982)

 

 

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03
Jul 12

BERLIOZ

I

 

É assim que me vejo: cabeça pousada

nos seus joelhos, as mãos esquecidas

no sossego branco das suas mãos,

numa adoração sem tormento

que põe nos olhos o fulgor

que os livros e os nomes não dizem.

É assim que estou: com um único endereço,

o da saudade que o seu rosto

deixou nos meus dedos trémulos e mansos.

Não irei visitá-la a Lyon por temer importuná-la,

por não querer fazer da minha presença

um fardo, uma doença, um surdo incómodo.

Adorá-la-ei à distância, como se adoram

os tesouros intocáveis da abóbada dos céus.

 

José Jorge Letria

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24
Nov 11

A DOENÇA DA PEDRA

Os barcos padeciam da doença da pedra:

estavam imóveis sobre os ancoradouros

como se não existisse a tentação do mar.

Tinham cordas enrodilhadas, remos ensarilhados,

velame estendido no convés, e, para além disso,

um imenso vazio a inundar os porões e as pontes.

Apodreciam, pacientes, à míngua de vento,

saudoso do embalo das ondas,

desnorteados pela falta de rota.

Eram barcos com uma embriaguez de vento

erguida na proa e uma coroa de algas

levantada nos mastros. Vinham altivos

do mar de outros séculos, arrecadando no bojo

um tesouro de vozes, uma bravura corsária,

uma cobiça de oiro. Deitava-me neles

com um sonho enredado nas malhas que tiram

sustento das águas e com um mapa

para sempre guardado na febre dos olhos.

 

José Jorge Letria

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18
Set 11

O ESPÍRITO DOS PÁSSAROS

Os índios acreditam que o homem
é o espírito dos pássaros,
deslumbrante e volátil,
como uma nuvem de espuma,
um óleo santo, ou um fogo ritual.

Assim se cumpre o seu destino
de adoradores do trigo, da lava
e do sol, de fabricantes de setas
ardentes como um lume fatal.

Conspiram os pássaros contra
o espírito dos homens
que os tiraniza e fere de morte.
Dançam em torno das estações,
trabalhando pela fertilidade
das colheitas, migrantes e sequiosos.

José Jorge Letria
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03
Set 11

SOBRE O LINHO

A avó inclina-se sobre o linho
guarda estrelas no cesto do carvão
com as mãos gretadas pelo gelo das manhãs
pelos cristais de água da estação das chuvas

As histórias que conta são
as do assombro e da claridade ofuscada
pelo rasto dos cometas

Vorazes são os lobos insones
à beira dos portões da infância:
as crianças voam para o céu

Vejo-a arquejante sobre as almofadas
com a primavera agonizando nas janelas

José Jorge Letria
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15
Ago 11

...

Ai, pudesse eu ser pintor e verter
numa folha impressa, limpa, as cores todas
que a cidade me reserva no seu bojo
de água clara e luz aquietada rente
aos muros das hortas e às paredes rosa velho
dos prédios da memória da infância.

Ai, pudesse eu transfigurar-me em ave
daquelas que salpicam em voo o cetim
azul das tardes e pintaria a golpes de asa
uma outra vocação que não a minha, talvez
a tonitruante vocação dos hereges, dos
revoltosos, dos anunciadores de tudo
o que se muda e se transforma; outro
desígnio não quereria ter a não ser este:
o de me fazer na cor comum do que vejo e sinto.

José Jorge Letria
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22
Jul 11

UM FOGO O PERCORRE

No ângulo raso do rosto
a palavra se esmaga
violenta

No ângulo recto da raiva
a lâmina se quebra
imprevista

No rumor da maré
o corpo todo se altera
dolente

O sangue não pára nos lábios
correndo pelos canais
amargo

A memória ainda se repete
no cristal dos olhos
em redor

O amor de súbito
se torna ácido agreste
de ponta a ponta fascinado
Um fogo o percorre
intensamente

José Jorge Letria
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11
Jul 11

BRUEGHEL

Representados estão os meses outonais,
os rituais da caça, as parábolas
e os exorcismos, as peregrinações
e os horrores da carne na tela luminosa
do pintor que se senta a ver
dançar os camponeses e conta de babel
o tecido alucinante de mil línguas
fundindo-se em espirais de som

Pelas veredas abertas na neve
se evadem os caçadores e suas sombras
furtivas e trémulas e o pintor
à maneira de quem recorda um provérbio flamengo
tira do cerimonial das cores uma moral
justa e eterna: a felicidade do homem
é um tríptico incompleto
com pássaros vorazes planando em volta

José Jorge Letria
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25
Jun 11

...

Eu pertenço à sonolência deste azul,
à nudez das estátuas de areia
povoando a solidão nocturna das praias.
Fui com os pescadores e voltei,
volta menino para que os que te amam
não sofram a ansiedade da espera.
Trouxe conchas e peixes de prata,
cachos de estrelas e redes de vento
e mergulhei na água que sabia a óleo
e bebi a aguardente dos náufragos
e acreditei nas histórias da viuvez
das mulheres agachadas nas dunas.
Eu podia ter sido marinheiro,
pescador das pérolas que há no êxtase
da palavra, eu podia ter sido tudo,
mas acabei por desembocar numa baía
com o assombro da infância
a falar-me de sereias e de fadas junto à cama.

José Jorge Letria
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07
Jun 11

LINHA DA MÃO

Hiato na linha da mão
junto à pequena mancha azul
de tinta da última carta.
Paisagem de poros, sulcos
e sombras, mergulhada na água
espessa de um postal sem data
das baías nocturnas
exaustas do vento do mar.
Corte oblíquo na palma húmida
que esmaga a asa
do insecto sobre o vidro
onde a imagem se bifurca
e a boca torna baços, difusos
os rostos que se perdem na distância
de um aceno à despedida.

José Jorge Letria
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