04
Out 17

NOCTURNO

Num céu vago,

A Lua é uma cabeça

Decepada

Que atiraram para um lago,

E ali ficou encalhada

Entre os limos,

Onde a água brilha estagnada...

 

Quando eu morrer afogado,

(Que eu quero morrer no mar!)

Hei-de vir à flor das vagas,

E boiar,

Até ficar encalhado

Entre espumas, algas, fragas...

 

Fecho as portas,

Recolho-me,

Olho o quarto, e, de repente,

Vejo a cama escancarada,

Toda aberta,

Como uma nudez oferta

Aos olhos dum impotente...

 

Que eu tenho medo aos lençóis,

E aos cobertores,

E ao meu sono que há-de vir.

Lá por fora há rouxinóis...

Mas eu não posso sair,

Que tenho medo

De passar nos corredores!

 

Em frente, no meu espelho,

Alguém me espreita,

Alguém me atrai, me repele.

Tem um sorriso de velho...

E não se deita,

Com medo de mim, e eu dele.

 

Uma por uma, alongadas

Pesadas

Como lágrimas de chumbo,

Despegam-se as badaladas

Da meia-noite.

Caem lentas, espaçadas...

Dão-e na cabeça..., doem-me!,

Batem-me no peito..., doem-me!,

Doem-me como pauladas...

 

A um canto, uma cantarinha,

De mão à cinta, sardónica,

Lembra uma rapariguinha

Decapitada

Que me pedisse a cabeça

De certa maneira irónica,

Grotesca e desesperada.

 

A seu lado, uma cabeça

Desenhada com dois traços

Olha-me, e, fixa, acusa-me

De lhe não ter dado braços.

 

Pobre cabeça

Que debuxei a nanquim,

Grudei sobre cartolina,

Pespeguei ali no muro,

Tudo isso a pensar em mim...!:

Que a minha angústia refina

Naquele traço,

E eu estou ali mais vivo,

E é ali que mais me sondo,

Do que no corpo cativo

Em que me escondo,

E embaraço...

 

Ai de mim, que poiso em tudo

Como a luz ou como a poeira!

Ai que me não sei maneira

De deixar de ser imenso...!

Por isso tenho tal medo:

Quando penso..., porque penso;

Se não penso..., porque não;

Tenho medo do segredo

Com que vim!

...Ou será tudo loucura,

Literatura,

Fogo-fátuo, solidão,

E eu não viverei, senão

No metro e meio de mim?...

 

Lá nos abismos do espelho,

Aquele tal que me espia,

Me seduz e me repele,

Tem um tique de ironia

Na boca fria.

 

Meu Deus!, serei eu aquele,

Serei essa cantarinha,

Este corpo a que me agarro,

Ou a cabeça a nanquim

Que, fixa de mim, me pede,

Projectada na parede

Como um escarro?...

 

Na minha mesa de estudo

(Pedra-mármor, morgue fria

Onde estudo a anatomia

De todos, tudo...!)

Há um retratinho modesto

Que me fico a olhar de rastros.

 

E tenho medo, também,

Desses dois astros

Com que me persegues, Mãe!

Que eu matei esse menino

A quem deste de mamar,

Que teve um berço, e embalaste,

Que geraste,

Que pariste,

Por quem rezaste e sofreste,

Por quem tens esse olhar triste,

Desenganado,

Celeste...

 

Mãe! tenho medo

De já ter andado tanto,

E de estar aqui fechado,

No espanto

Do meu segredo...!

 

Ai roupas que hei-de vestir,

Ai gestos que hei-de fazer,

Ai frases que hei-de tecer,

Ai palavras que hei-de ouvir...!...

Mãe! tenho medo do dia

Que vai romper!

 

E ao fundo do espelho, o tal,

Com seu tique de ironia

Na boca fria,

Seus hirtos lábios agudos,

Seus olhos mudos,

Ensina-me a hipocrisia

De continuar a viver.

 

José Régio, As Encruzilhadas de Deus (1936)

 

 

 

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18
Nov 14

VERSOS DA BELA ADORMECIDA

Lá longe, muito longe, ai, muito longe!, ao fundo

              De areias e gelos do cabo do mundo,

Depois de ralos, aflições, suores, dragões, ciladas, perigos,

              E bosques tenebrosos, antigos, antigos.

 

Sonhei que ela me espera, adormecida

             Desde o começo da vida,

Nua, deitada sobre as tranças de oiro,

             Guardada para mim como um tesoiro.

 

             Sonhei que um nimbo argênteo a veste,

Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste,

             E que sobre ela paira o silêncio profundo

             Dos gelos e areias do cabo do mundo...

 

No seu lábio, um sorriso ainda transido

Ficou, como na boca das estátuas, esculpido,

               Esperando, talvez, para raiar,

               Que ela suba as pestanas, devagar...

 

Vi uma vez, em sonhos vi, que aquelas pálpebras se erguiam,

Sim, devagar..., sim, devagar..., e que os seus lábios me diziam,

             Estendidos para mim:

             -- «Chegaste?, chegaste enfim?!»

 

             E eu soluçava: -- «Sim, sou eu...!

«Mas tu..., és tu, bem tu, Porta do Céu?!

«És tu, ou não és mais que mais uma miragem

«Das tantas que encontrei pela viagem? 

 

«Ai, que de vezes já supus que te possuía

«Em uma imagem que afinal era vazia, era vazia!

«E que longe, afinal, te não venho encontrar,

«Que passei ermos, passei montes, passei pegos, passei mar...»

 

Foi isto em sonhos. Acordado, eu perguntava: -- «Que farei?

               «Aonde... a que longe irei,

«Para que vos atinja, ó silêncios sem fundo

               «De areias e gelos do cabo do mundo?

 

«Anjos, demónios, serafins de asas de lanças e cabelos

               «De chamas e serpentes aos novelos,

               «Génios que em sonhos me guiais!:

               «Já me não bastam sonhos! Quero mais.

 

               «Quero, através seja de que desertos,

                «Chegar a ver, com olhos bem despertos,

                «O resplendor que sei que a veste,

                «Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste...»

 

Assim falei. Ninguém, porém, me mostrou ter ouvido.

               Meu grito, além, se extinguiu já, perdido...

E eu morro deste ardor, que nada acalma,

               Com que aspiro debalde à minha própria alma.

 

 

José Régio,

As Encruzilhadas de Deus (1936)

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24
Jul 13

MEU MENINO, INO, INO

1

 

Dos versos que exprimem,

Estou cansado!

 

Das palavras que explicam,

Estou cansado!

 

Ai, embala-me, fútil, e frágil, no ó-ó dos teus versos,

Ai, encosta-me ao peito...!

 

Mais não quero que ser embalado.

 

 

2

 

O menino está doente...

-- Diz a mãe.

 

Qui-é qui-é

Que o menino tem?

 

Ai...!

Diz o pai.

 

A criada velha chora pelos cantos

E reza a todos os santos...

 

Afirma o senhor doutor

Que amanhã que está melhor.

 

O pai suspira:

-- Quem sabe lá?!

 

E o menino diz:

-- Papá...!

 

A mãe chora:

-- Quem já me dera amanhã!...

 

E o menino diz:

-- Mamã...!

 

E, com a febre, rezinga,

E choraminga,

Olhando a lua amarela

Como uma vela:

-- Quero aquela péla...!

 

Mas o Pai do Céu sorri:

-- Vem cá vê-la!

É para ti.

 

 

3

 

-- Acabaste?

 

-- Meu amor, acabei.

 

-- Apagaste a candeia? apagaste?

 

-- Meu amor, apaguei.

 

- E fechaste o postigo? e fechaste?

 

- Meu amor..., sim, fechei.

 

-- Que rumor é aquele? não sentes?

 

-- Meu amor, que te importa?

É a vida a dar socos na porta.

É lá fora. São eles. É o mundo. São gentes.

 

-- São gentes? Quem são?

 

-- São colegas, amigos, parentes...

 

-- Vai dizer-lhes que não! Vai dizer-lhes que não!

 

José Régio,

As Encruzilhadas de Deus

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01
Jul 13

COLEGIAL

Em cima da minha mesa,

Da minha mesa de estudo,

Mesa da minha tristeza

Em que, de noite e de dia,

Rasgo as folhas, leio tudo

Destes livros em que estudo,

E me estudo

(Eu já me estudo...)

E me estudo,

A mim,

Também,

Em cima da minha mesa,

Tenho o teu retrato, Mãe!

 

À cabeceira do leito,

Dentro dum lindo caixilho,

Tenho uma Nossa Senhora

Que venero a toda a hora...

Ai minha Nossa Senhora

Que se parece contigo,

E que tem, ao peito,

Um filho

(O que ainda é mais estranho)

Que se parece comigo,

Num retratinho,

Que tenho,

De menino pequenino...!

 

No fundo da minha mala,

Mesmo lá no fundo a um canto,

Não lhes vá tocar alguém,

(Quem as lesse, o que entendia?

Só riria

Do que nos comove a nós...)

Já tenho três maços, Mãe,

Das cartas que tu me escreves

Desde que saí de casa...

Três maços -- e nada leves! --

Atados com um retrós...

 

Se não fora eu ter-te assim,

A toda a hora,

Sempre à beirinha de mim,

(Sei agora

Que isto de a gente ser grande

Não é como se nos pinta...)

Mãe!, já teria morrido,

Ou já teria fugido,

Ou já teria bebido

Algum tinteiro de tinta!

 

José Régio,

As Encruzilhadas de Deus

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10
Dez 11

...

A mocidade duma obra só vem a ser aceite quando o tempo correu sobre ela.

 

José Régio

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17
Dez 10

ÍCARO

A minha Dor vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopeia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.

Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia
E as multidões desceram ao povoado,
Que a minha Dor cantava de sereia...

Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor...
E eu levantei a face, a tremer todo:

Jesus! ruíra em cima o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo.

José Régio
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15
Dez 10

NOSSA SENHORA

Tenho ao cimo da escada, de maneira
Que logo, entrando, os olhos me dão nela,
Uma Nossa Senhora de madeira
Arrancada a um Calvário de capela.

Põe as mãos com fervor e angústia. O manto
Cobre-lhe a testa, os ombros, cai composto;
E uma expressão de febre e espanto
Quase lhe afeia o fino rosto.

Mãe das Dores, seus olhos enevoados
Olham, chorosos, fixos, muito além...
E eu, ao passar, detenho os passos apressados,
Peço-lhe: -- «A sua benção, Mãe!»

Sim, fazemo-nos boa companhia,
E não me assusta a sua dor: quase me apraz.
O Filho dessa Mãe nunca mais morre. Aleluia!
Só isto bastaria a me dar paz.

-- «Por que choras, Mulher?» -- docemente a repreendo.
Mas à minh'alma, então, chega de longe a sua voz
Que eu bem entendo:
-- «Não é por Ele...»
                 -- «Eu sei! Teus filhos somos nós».

José Régio
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10
Set 10

SONETO DE AMOR

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., -- unidos.
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... -- abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio
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