27
Ago 18

CRONOMETRIAS

Nos dias de Heródoto usavam-se

modos mais exactos de medir o tempo

o gotejar da água para a ânfora

o escorrer da areia, grão a grão

a viagem da sombra, como se não fosse

 

José Tolentino Mendonça, Teoria da Fronteira (2017)

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12
Dez 13

P&R [pergunta e resposta] -- José Tolentino Mendonça

No entanto, o poema é feito de palavras.  Mas creio que é o silêncio que escreve o poema. As palavras estão lá para o testemunhar. Porque o poema não é a evidência, mas a interrogação, a sugestão, a lacuna, a fenda, a porta entreaberta, a possibilidade de viagem para cá e para lá dele. Nesse sentido, é sempre um sinal transitório, não um vestígio definitivo. O definitivo é justamente onde nos leva. Por isso o endereço do poema é o silêncio.

Entrevista a Maria Leonor Nunes,JL#1127, 11.XII.2013.

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30
Dez 11

LOURDES CASTRO, RUA DA OLARIA

O pardal do campo descobre muitos lugares para uma casa

a poucos metros de mim

mundos sobrepostos transitam, preenchem o silêncio

e para o ânimo deles

quem não se levantaria cedo?

 

A minha arte é uma espécie de pacto:

não distingo as áreas selvagens das cultivadas

e elas não distinguem a minha sombra

da minha luz

 

José Tolentino Mendonça

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02
Dez 11

TRIESTE

Nesse verão nenhum de nós buscava terra firme

parecia-nos caminhar há séculos sobre as águas

Donde viemos nós? Como chegámos a esta luz

austríaca sobre as colinas

ao fumo lento no anfiteatro do golfo

à ordem aleatória do tempo?

 

Talvez nos caiba viver por cidades estranhas

em casas que esconderão sempre o seu medo

e a sua glória

só diante dos céus

sem a certeza culminante

 

Vemos a tarde perder-se na direcção do molhe

o mundo é aquilo que nos separa do mundo

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18
Ago 11

OS INSIGNIFICANTES

O custo das casas
por incrível que pareça
sugere a possibilidade
de uma outra vida
a alma não mora debaixo do seu tempo
traz de tão longe a fragrância
de uma vegetação que cresce

mais abaixo junto à represa
um trecho de sombra
a estação tornou tudo amarelo uma última vez
o pinheiro, o rumor dos caçadores, a corrida atrapalhada da perdiz

nas vagas recordações
a orla de uma alegria que ninguém viu

os insignificantes flutuam
ao vento contínuo de Deus

José Tolentino Mendonça
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25
Jul 11

POÉTICA

Estes quantos traços que se parecem com a sombra
(às mãos devemos também a solidão mais implacável)
talvez nem mereçam essa forma de lentidão: a leitura
escrevi-os num jardim onde patos grasnam ao frio
e folhas se despenham atrás do vento

Sobre a terra sem nenhum rumor
um verso é sempre tão pouco
em redor do que se pode observar
tenho medo pois de repente
a tua respiração ficou demasiado perto
da essência instável, dissonante

E isso é tudo o que nos resta

José Tolentino Mendonça
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18
Jul 11

A VOZ SOLITÁRIA DO HOMEM

Há palavras que escrevemos mais depressa
o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhe é desconhecido
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono

José Tolentino Mendonça
publicado por RAA às 23:42 | comentar | favorito
13
Jan 11

PARA LER AOS NOVIÇOES

Deus não aparece no poema
apenas escutamos a sua voz de cinza
e assistimos sem compreender
a escuras perícias

A vida reclama inventários e detalhes
não a oiças
quando inutilmente perscruta as sequências
do seu trânsito

Só há um modo verdadeiro de rezar:
estende o teu corpo ao longo do barco
que desce silencioso o canal
e deixa que as folhas mortas do bosque
te cubram

José Tolentino Mendonça
publicado por RAA às 12:30 | comentar | favorito
20
Out 10

SETEMBRO

                ...quanto mais envelheço, mais pueril é a luz
                mas essa vai comigo.

Nesses dias distantes eu vagueava pelas matas
enchia a espigarda de chumbo e disparava
contra o silêncio das árvores altas
só para assistir ao espectáculo dos pássaros em debandada
experimentava uma exaltação -- de que tenho hoje pudor
perante imagens que partem:
fragmentos rápidos, passagens, segredos que se apagam
nesses dias distantes nem suspeitava
a vida pode ser interminável

o que deixaste abandonado regressa aprende-se depois
quando, por exemplo, a esquecida infância se parece
com certos cães deixados de propósito a muitos quilómetros
que ladram não se percebe como
à porta da velha casa

José Tolentino Mendonça
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11
Out 10

OS VERSOS

Os versos assemelham-se a um corpo
quando cai
ao tentar de escuridão a escuridão
a sua sorte

nenhum poder ordena
em papel de prata essa dança inquieta

José Tolentino Mendonça
publicado por RAA às 23:57 | comentar | favorito