20
Set 16

SÉTIMO POEMA DO PESCADOR

Como estrela cadente

como pedra rolando

na corrente

como lua caindo por detrás das dunas

como revérbero nas águas como reflexo

como um foco na noite

como um cigarro uma lanterna um astro

como escamas luzindo no canal

como o resto de um rasto

como um sinal: mada mais do que um sinal

uma luz a acender e a apagar.

Ou eu

a pescar.

 

Lisboa, 26.12.96

 

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades (1998)

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18
Set 16

CANTO PENINSULAR

Estar aqui dói-me. E eu estou aqui

há novecentos anos. Não cresci nem mudei.

Apodreci.

Doem-me as próprias raízes que criei.

 

Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou

a tempestade.

Muita coisa mudou. Só não mudou

este monstro que tem a minha idade.

 

E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou

em novecentos anos.

Eu é que não mudei. Neste monstro que sou

só os olhos ainda são humanos.

 

Quantas vezes gritei e não me ouviram

quantas vezes morri e me deixaram

nos campos de batalha onde depois floriram

flores e pão que do meu sangue se criaram.

 

Andei de terra em terra

por esse mundo que de certo modo descobri.

E fui soldado contra a minha própria guerra

eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.

 

Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.

Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.

Eis-me tal como sou há novecentos anos

eu que não sei escrever sequer o meu próprio nome.

 

Falam de mim e dizem: é um herói.

(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)

Mas nunca ninguém disse a razão por que me dói

estar aqui.

 

Manuel Alegre, Praça da Canção  (1965)

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11
Set 16

E O BOSQUE SE FEZ BARCO

Já meu país foi uma flor de verde pinho.

País em terra. (E semeá-lo uma aventura.)

Depois abriu-se o mar como um caminho.

Depois o bosque se fez barco e o barco arado

dessa nova e fatal agricultura:

colher no mar o fruto nunca semeado.

 

Manuel Alegre, O Canto e as Armas (1967)

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11
Abr 16

NEM SÓ O SUL

Nem só o sul O'Neill nem só o sol
por debaixo da sombra há outras sombras
no interior da casa talvez na cama
sob os lençóis
no desejo reprimido na violência contida
no ancestral orgulho masculino
no grito abafado das mulheres
há outras noites outras sombras outras portas fechadas
outros domínios proibidos
outras coutadas.

 

 

Manuel Alegre, Alentejo e Ninguém (1996)

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26
Dez 15

QUINTO POEMA DO PESCADOR

Eu não sei de oração senão perguntas

ou silêncios ou gestos ou ficar

de noite frente ao mar não de mãos juntas

mas a pescar.

 

Não pesco só nas águas mas nos céus

e a minha pesca é quase uma oração

porque dou graças sem saber se Deus

é sim ou não.

 

Lisboa, 9.12.96

 

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades (1998)

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22
Dez 15

TERCEIRO POEMA DO PESCADOR

Sou apenas a cinza de uma estrela

um viajante de passagem

o rastro de uma bola de fogo arrefecida

um resto

neurónios nervos músculos ossos células

matéria perecível transformável

um bípede de fala e de guitarra

carregado de versos e metáforas

um metro e setenta e cinco de um planeta condenado

amanhã não serei senão uma faísca

um relâmpago na noite

uma faúlha

a sombra de uma sombra ou outra forma de energia

sou o último som de uma última sílaba

uma fórmula um acto uma alquimia

um desastre de Deus na escuridão do além

rosto nenhum corpo de nada

ou talvez a lágrima luminosa

de ninguém.

Lisboa, 31.12.96

 

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades (1998) 

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13
Dez 15

OLHANDO O MAR

Sentados na varanda olhando o mar

não sei ao certo o que pensam ou recordam

se um filho morto ou a viagem nunca feita

um verão há muito um só verão não mais.

Não sei sequer se esperam qualquer coisa

ou simplesmente olham o mar

sentados na varanda ao fim da tarde.

Dois traços sobre um azul de Turner

um outro traço; a sugestão de um barco

aquele em que navegam ao fim dsa tarde

quando pego na caneta e devagar começo: 

«Sentados na varanda olhando o mar»

 

5-4-2003

 

Manuel Alegre, Doze Naus (2007)

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12
Dez 15

SURF

De pé na frágil tábua

onda a onda ele escrevia

poesia sobre a água.

 

Era uma escrita tão una

de tão perfeita harmonia

que o que ficava na espuma

 

não se podia apagar:

era a própria grafia

do poema do mar.

 

Foz do Arelho, Agosto de 2001

 

Manuel Alegre, Doze Naus (2007)

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04
Dez 15

RAIZ

Canto a raiz do espaço na raiz

do tempo. E os passos por andar nos passos

caminhados. Começa o canto onde começo

caminho onde caminhas passo a passo.

E braço a braço meço o espaço dos teus braços

oitenta e nove mil metros quadrados.

E um país por achar neste país.

 

Manuel Alegre, O Canto e as Armas (1967)

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28
Nov 15

A CASA

Paredes brancas pátios interiores

as mesas largas as cadeiras quase toscas

despojamento de convento e de deserto

a planície prolonga-se na casa

com seu rigor e sua estética

do necessário

do liso

do elementar.

 

Aristocracia do pobre

com sua manta e com seu cobre.

 

Há um cheiro a pão recém-cortado.

 

A casa alentejana está escrita na planície

como o poema no branco descampado.

 

Manuel Alegre, Alentejo e Ninguém (1986)

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