22
Abr 15

A CIGARRA E A FORMIGA

Tendo a Cigarra em cantigas

Folgado todo o verão,

Achou-se em penúria extrema

Na tormentosa Estação.

 

Não lhe restando migalha,

Que trincasse a Tagarela

Foi valer-se da Formiga,

Que morava perto dela.

 

Rogou-lhe que lhe emprestasse,

Pois tinha riqueza e brio,

Algum grão com que manter-se,

Té voltar o aceso Estio.

 

-- "Amiga, (diz a Cigarra)

Prometo à fé d'animal

Pagar-vos antes de Agosto

Os juros e o principal."

 

A Formiga nunca empresta,

Nunca dá, por isso ajunta

-- "No Verão em que lidavas?"

À pedinte ela pergunta.

 

Responde a outra: "Eu cantava

Noite e dia, a toda a hora."

-- "Oh bravo! (Torna a Formiga)

Cantavas? Pois dança agora."

 

(La Fontaine)

versão de Bocage

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26
Jun 14

O MACACO DECLAMANDO

Um mono, vendo-se um dia

Entre brutal multidão,

Dizem lhe deu na cabeça

Fazer uma pregação.

 

Creio que seria o tema

Indigno de se tratar,

Mas isso pouco importava,

Porque o ponto era gritar.

 

Teve mil vivas, mil palmas,

Proferindo à boca cheia

Sentenças de quinze arrobas,

Palavras de légua e meia.

 

Isto acontece ao Poeta,

Orador e outros que tais:

Néscios o que entendem menos

É o que celebram mais.

 

Fábulas de Bocage

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29
Abr 12

Fábulas de Bocage

autor: Manuel Maria Barbosa du Bocage (Setúbal, 15.IX.1765 -- Lisboa, 21.XII.1805)

título: Fábulas de Bocage

edição: Centro de Estudos Bocageanos, a partir da edição de 1805

introdução e actualização de texto: Daniel Pires

local: Setúbal

ano: 2000

dimensões: 24,5x20,50,8 cm (cartonado)

págs.: 40

ilustrações: Julião Machado

retrato do autor: Nogueira da Silva

impressão: Corlito, Setúbal

tiragem: 2000

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25
Out 11

...

Liberdade querida e suspirada,

Que o Despotismo acérrimo condena!

Liberdade, a meus olhos mais serena

Que o sereno clarão da madrugada!

 

Atende à minha voz, que geme e brada

Por ver-te, por gozar-te a face amena!

Liberdade gentil, desterra a pena

Em que esta alma infeliz jaz sepultada!

 

Vem, oh deusa imortal, vem maravilha,

Vem oh consolação da humanidade,

Cujo semblante mais que os astros brilha!

 

Vem, solta-me o grilhão da adversidade!

Dos céus descende, pois dos céus és filha,

Mãe dos prazeres, doce Liberdade!

 

Bocage

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12
Out 11

...

Marília, nos teus olhos buliçosos

Os Amores gentis seu facho acendem;

A teus lábios, voando, os ares fendem

Terníssimos desejos sequiosos.

 

Teus cabelos subtis e luminosos

Mil vistas cegam, mil vontades prendem;

E em arte aos de Minerva se não rendem

Teus alvos, curtos dedos melindrosos.

 

Reside em teus costumes a candura,

Mora a firmeza no teu peito amante,

A razão com teus risos se mistura.

 

És dos Céus o composto mais brilhante;

Deram-se as mãos Virtude e Formosura,

Para criar tua alma e teu semblante.

 

Bocage

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14
Out 10

SONETO DITADO NA AGONIA

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torna sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo. A língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:

-- «Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!»

Bocage
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07
Out 10

EPIGRAMA

Levando um velho avarento
Uma pedrada num olho,
Pôs-se-lhe no mesmo instante
Tamanho como um repolho.

Certo doutor, não das dúzias
Mas sim médico perfeito,
Dez moedas lhe pedia
Para o livrar do defeito.

«Dez moedas! (diz o avaro)
Meu sangue não desperdiço:
Dez moedas por um olho!
O outro dou eu por isso.»

Bocage
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29
Ago 10

PROPOSIÇÃO DAS RIMAS DO POETA

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas, e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

Bocage
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14
Ago 10

RETRATO PRÓPRIO

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorento.

Bocage
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26
Jun 10

SENTIMENTOS DE CONTRIÇÃO E ARREPENDIMENTO DA VIDA PASSADA

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões que me arrastava:
Ah!, cego eu cria, ah!, mísero, eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana:

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos;

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Bocage
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