24
Mai 13

"Rosa, a mulata, desperta"

Rosa, a mulata, desperta

Com os morcegos à hora

Em que a Lua, nódoa incerta

E sem vulto, no céu aflora

 

E Vénus, mito propício

Que em seu destino decide,

Convoca as filhas do Vício

Ao culto que ela preside.

 

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Reinaldo Ferreira

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III

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23
Jan 13

MAGAÍÇA

Magaíça, ao partir, não se prende

mas sofrendo no Rand é que aprende

que a mina é inferno, desterro e má sina,

que a terra é o céu de quem vive na mina!

 

Vem ver o sol, vem ver,

que é morte viver

debaixo do chão!

 

Diz, Magaíça, diz,

diz adeus à raiz,

diz adeus ao carvão...

O oiro que a mina te dá

não paga a saudade que há

no teu coração!

 

É lá fora que correm gazelas,

é lá fora que há nuvens e estrelas,

que o milho espigado, na seara a crescer,

parece que pede que o venham colher!

 

Reinaldo Ferreira

in Manuel Ferreira, No Reino de Caliban III

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05
Set 12

"Feliz do que é levado a enterrar"

Feliz do que é levado a enterrar,

Tão indiferente como quem nasceu!

Feliz do que não soube desejar,

Feliz, bem mais feliz do que sou eu!

 

Feliz do que não riu para não chorar,

Feliz do que não teve e não perdeu!

Feliz do que não sofre se ficar,

Feliz do que partiu e não sofreu!

 

Feliz do que acha bela e vasta a terra!

Feliz do que acredita a fome, a guerra

Terrores imaginários de crianças!

 

Feliz do que não ouve o mundo aos gritos,

Feliz! Felizes todos e benditos

Os que Deus fez iguais às pombas mansas...

 

Reinaldo Ferreira

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21
Jun 12

"Ela, a Poesia, hoje"

Ela, a Poesia, hoje,

Como que foge

De si mesma e se dói

De ter sido algum dia

Meramente poesia.

 

Erra,

Solitária e solene,

Nos caminhos da terra,

E vitupera o céu

E o que ele encerra:

-- Ah! morra! Ah! esqueça Orfeu!

 

Canta a grilheta, a enxada

E a madrugada

Dos dias que hão-de vir,

E como frutos, cair

Em nossas mãos...

 

Fala no imperativo,

E tem por vocativo

-- Irmão! Irmãos!

 

Mas longe,

E perto, porque em nós,

Onde uma fonte canta

Uma toada clara,

Um fauno sabe e ri,

Na pedra gasta e escura,

Um fim de riso

De ironia rara...

 

Reinaldo Ferreira

publicado por RAA às 11:39 | comentar | favorito
19
Abr 12

"Oh! tarde de sábado britânica"

Oh! tarde de sábado britânica,

Poema da rotina,

Prodígio do bem-estar...

Eu, que donde vou, latino e desgrenhado,

Intenso, irregular,

Apenas sei a vibração e o desânimo

(O sol excessivo e a sombra opaca),

Olho-te no deslumbramento

De quem se banha

E se deslumbra

Em penumbra.

 

Reinaldo Ferreira 

publicado por RAA às 15:42 | comentar | favorito
20
Mar 12

"É pela tarde, quando a luz esmorece"

É pela tarde, quando a luz esmorece

E as ruas lembram singulares colmeias,

Que a alegria dos outros me entristece

E aguço o faro para as dores alheias.

 

Um que, impaciente, para o lar regresse,

As viaturas que cruzam cheias

Dos que fazem da vida uma quermesse,

São para mim, faminto, odor de ceias.

 

Sentimento cruel de quem se afasta,

Por orgulho repele, e se desgasta

No esforço de fugir à multidão.

 

Mas castigo de quem, por imprudente,

Já não pode deter-se na vertente

Que vai da liberdade à solidão.

 

Reinaldo Ferreira

publicado por RAA às 15:57 | comentar | favorito
16
Fev 12

...

A que morreu às portas de Madrid,

Com uma praga na boca

E a espingarda na mão,

Teve a sorte que quis,

Teve o fim que escolheu.

Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.

E antes de flor, foi, como tantas, pomo.

Ninguém a virgindade lhe roubou

Depois dum saque -- antes a deu

A quem lha desejou,

Na lama dum reduto,

Sem náusea mas sem cio,

Sob a manta comum,

A pretexto do frio.

Não quis na retaguarda aligeirar,

Entre «champagne», aos generais senis,

As horas de lazer.

Não quis, activa e boa, tricotar

Agasalhos pueris,

No sossego dum lar.

Não sonhou minorar,

Num heroísmo branco,

De bicho de hospital,

A aflição dos aflitos.

 

Uma noite, às portas de Madrid,

Com uma praga na boca

E a espingarda na mão,

À hora tal, atacou e morreu.

 

Teve a sorte que quis.

Teve o fim que escolheu.

 

Reinaldo Ferreira 

publicado por RAA às 15:36 | comentar | favorito
23
Jan 12

CANÇÃO NOCTURNA

Café de cais

onde se juntam

anónimos de iguais,

os ratos dos porões,

babel de todos os calões,

rio de fumo e de incontido cio,

sexuado rio,

que busca, único mar,

mulheres de pernoitar,

unge-te a nojo, não Anfitrite,

fina ficção marinha,

mas nauseabundo

e tutelar

o vulto familiar

da Virgem Vício,

Nossa Senhora do Baixo Mundo.

 

Reinaldo Ferreira

publicado por RAA às 14:56 | comentar | favorito