07
Set 11

...

A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, atá ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.
[...]
É claro que falo do poeta e não do poetastro, do industrial e comerciante de poemas, do promotor da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que constantemente se sublevou. [...]

Ruy Belo, «Breve programa para uma iniciação ao canto», Transporte no Tempo, 4.ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp. 19-20.
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22
Ago 11

PALAVRAS DE JACOB DEPOIS DO SONHO

Amei a mulher, amei a terra, amei o mar
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar
De muitas delas de resto falei
Não sei talvez eu me possa enganar
foram tantas as vezes que me enganei
mas por trás da mulher da terra e do mar
pareceu-me ver sempre outra coisa talvez o senhor
É esse o seu nome e nele não cabe temor
Mas depois deste sonho sou obrigado a cantar:
Eis que o senhor está neste lugar
Porquê não sei talvez uma pequena haste balance
talvez sorria alguma criança
Terrível não é o homem sozinho na tarde
como noutro tempo de esplendor cantei
Terrível é este lugar
Terrível porquê? Não sei bem
Talvez porque o senhor pisa esta terra com os seus pés
(lembro-me até de que mandou tirar as sandálias a moisés)
Levanto os dois braços aos céus
Aqui -- mulher terra mar --
Aqui só pode ser a casa de deus
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29
Dez 10

A MULTIPLICAÇÃO DO CEDRO

O senhor deus é espectador desse homem
Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
nos olhos o tempo suave das árvores
Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
cada uma das quatro estações
A primavera veio e ele árvore singular
à beira do tempo plantada
vestiu-se de palavras
E foi a folha verde que deus passou
pela terra desolada e ressequida
Quando as palavras o deixaram de cobrir
ficaram-lhe dois olhos por onde
O senhor olha infinitamente a sua obra
Até que as chuvas lhe molharam os olhos
e deles saíram rios que foram desaguar
ao grande mar do princípio

Ruy Belo
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29
Ago 10

CDC/DCD

A natureza em conjunto padece
e como o sofrimento muito a cansa
vinga-se em quem primeiro lhe aparece
e para ser maior essa vingança
já a futura morte transparece
no pequenino rosto da criança.

Ruy Belo
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25
Ago 10

PARA A DEDICAÇÃO DE UM HOMEM

Terrível é o homem em que o senhor
desmaiou o olhar furtivo de searas
ou reclinou a cabeça
ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina
Não há conspiração de folhas que recolha
a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro
quando caminha pela tarde acima
A morte é a grande palavra desse homem
não há outra que o diga a ele próprio
É terrível ter o destino
da onda anónima morta na praia

Ruy Belo
publicado por RAA às 23:59 | comentar | favorito
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12
Jul 10

PRAIA DO ABANO (OU OUTRA PRAIA)

Vejo subitamente recuares até à tua infância
cruzares ruas montras onde passo agora
e sofro sem remédio não haver saída
em minha vida que não seja a tua face
isenta dos meus olhos vista só por ti

A bola é louca, boca anónima infantil
Ó árvore plantada indiferente de cidade
à mesa onde amarro a minha vida
e corro sem correr para nenhum lugar
distante de onde estou como se já lá estivesse
A cara e o cansaço e os cilindros: prece

Tu és agora uma criança inacessível para mim
e em nenhum país alguma vez te vi
Estou de novo comigo e sofro levantado não haver ninguém
até que enfim deitado eu cumpra a minha condição
e não houve pessoa a que eu não fizesse mal

Ruy Belo
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07
Fev 09

ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM PÁSSAROS E ÁRVORES QUE O POETA REMATA COM UMA REFERÊNCIA AO CORAÇÃO

Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
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17
Jan 09

ÁRVORE RUMOROSA

Árvore rumorosa pedestal da sombra
sinal de intimidade decrescente
que a primavera veste pontualmente
e os olhos do poeta de repente deslumbra

Receptáculo anónimo do espanto
capaz de encher aquele que direito à morte passa
e no ar da manhã inconsequentemente traça
o rasto desprendido do seu canto

Não há inverno rigoroso que te impeça
de rematar esse trabalho que começa
na primeira folha que nos braços te desponta

Explodiste de vida e és serenidade
e imprimes no coração mais fundo da cidade
a marca do princípio a que tudo remonta

Ruy Belo
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