UMA VIDA DE CÃO

Não

não é a poesia caixa de música

ou a poesia piolho místico enterrado no sebo destes dias

ou qualquer outra

que podem dissolver a tua alma

tão problemática

no vinho da beatitude

 

Ah

o «mistério» da poesia a poesia

técnica da confusão

a capelista poética e os primeiros fregueses

ainda a medo ainda receosos

de te pedirem a Dor em alfinetes que não tenhas

logo ali à mão

 

E quando dizes «Poesia» eu tenho nojo

aquele nojo violento que me dá

o olhar furtivo a atenção desatenta

dos que se demoram nos lavabos nas salas dos cinemas

de mãos distraídas procurando

a solução da noite

 

Instalaram-se em ti

a mesma contracção suspeita

a mesma hipocrisia o mesmo sobressalto

a mesma curva obscena

que o olhar descreve

goza

e disfarça

 

Quando dizes «Poesia» dizes medo

dizes família tradição classe

e a vida de cão que te esperava

e que é hoje a tua vida a tua «transcendente»

vida de cão

 

                         *

 

Ensinaram-te palavras que pareciam

prontas a derrotar quem as ouvisse

ensinaram-te gestos para elas

e a tal ponto te humilharam

que te puseram de pé

limpo

inteligente

e aprumado

 

Pronto a seguir

seguiste

e agora estás aqui pois claro

angustiado e iludido

mas deliciado

 

                         *

 

Atá aos útlimos arcanos

cafés e leitarias

seguiste André Breton

ou a sombra dele

e a aventura mental que procurava

um sinal exterior

um estilhaço vivo do acaso

a Nadja lisboeta que salvasse

ou a noite ou a vida

acabou em «bons» poemas «maus» poemas

em palavras e palavras

 

E coberto de palavras enterrado

numa terra de murmúrios de gemidos

teu coração já nada faz mover

senão moinhos de palavras

e «a dor é grande» dizes tu

«mas sublime»

 

*

 

Mas não sou eu que te lamento

Os teus mitos esperam-te

já impacientes

 

Agora põe-te a andar

agora passa por cá daqui a uns anos

 

Talvez me encontres

talvez possa fazer qualquer coisa por ti

qualquer coisa simples

quase inútil

quase ridícula

          oferecer-te uma sílaba

          um conselho

          um cigarro

 

Alexandre, O'Neill,

Tempo de Fantasmas / Poesias Completas 1951/1981

publicado por RAA às 13:14 | comentar | favorito