28
Mai 09
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Mai 09

REQUIEM PELA VELHA AMEIXIEIRA

Crepita a madeira na lareira
crepita a velha ameixieira
seus veios são as minhas próprias veias
vejo arder as ameixas e o verão
crepita aquela que deu sombra e agora dá calor
crepita o melro o verdilhão o rouxinol
e em cada tronco palpita
o próprio sol.
Crepita o sumo que escorria
pelo teu rosto onde o tempo também ardeu
crepita a velha ameixieira
e quem com ela crepita
sou eu.

Águeda, Natal, 2001
Manuel Alegre
publicado por RAA às 23:54 | comentar | favorito
24
Mai 09
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Mai 09

princípio do prazer

à sua volta os pombos cor de lava
nos arabescos pretos do basalto
e gente, muita gente que passava
e se detinha a olhá-la em sobressalto

no seu olhar havia uma promessa
nos seus quadris dançava um desafio
num relance de barco mas sem pressa
que fosse ao sol-poente pelo rio

trazia nos cabelos um perfume
a derramar-se em praias de alabastro
e um brilho mais sombrio quase lume
de fogo-fátuo a coroar um mastro

seu porte altivo punha à vista o puro
princípio do prazer que caminhava
carnal e nobre e lúcido e seguro
com qualquer coisa de uma orquídea brava

e nas ruas da baixa pombalina
sua blusa encarnada era a bandeira
e o grito da revolta na retina
de quem fosse atrás dela a vida inteira.

Vasco Graça Moura
publicado por RAA às 02:20 | comentar | favorito
10
Mai 09
10
Mai 09

...

(Na minha vagabundagem nocturna entro
num café quase em frente da Igreja dos
Anjos, frequentado em tempos idos pelo
Poeta Alfredo Brochado, meu amigo so-
nâmbulo.)


Tantas vezes o vi naquela mesa da noite
calado em si mesmo
para não se acordar.

Nesse tempo,
já a poesia não lhe cabia nas palavras,
mas só nos gestos,
na levitação dos passos
perdidos dos ecos...

E certa tarde com uma lâmpada de sombra
pegou na poesia
e levou-a por um subterrâneo de luz
até ao silêncio
escavado nos gritos.

Nesse tempo,
para não quebrarmos o cristal de vivermos por fora,
já não juntávamos as noites na mesma mesa.

Sorríamos apenas,
cada qual do longe da sua ilha:
«Olá! como estás?»
E ficávamos a sonhar
-- simulacro de solidão,
ferrugens e distâncias.

Hoje não.

Hoje se ainda vivesses por fora
esta nossa morte de todos os dias,
iria sentar-me à tua sombra
para explorarmos juntos o silêncio.
E mostrar-te as bandeiras de frio molhado
que trago nos olhos.

Depois sairíamos ambos para o sabor das trevas
onde as formas se devoram
por dentro do sussurro
das ruas mortas.

José Gomes Ferreira

publicado por RAA às 03:22 | comentar | favorito