31
Jul 10

LIÇÃO

Quiseras que este mundo te ensinasse
uma palavra nova,
uma gota de luz que atravessasse
os corações de toda a gente,
o seu coro de espectros dissonantes,
o corredor tão escuro onde se abriga
o princípio do medo,
a tua alma em pânico.

Fernando Pinto do Amaral
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Nascente da Sede

autor: Fernando Jorge Fabião
título: Nascente da Sede
edição: 1.ª
colecção: «Imagem do Corpo» #72
editora: Ulmeiro
local: Lisboa
ano: 2000
capa: César Fidalgo
págs.: 98
dimensões: 20,5x14,7x0,6 (brochado)
tipografia: Garrido & Lino (Alpiarça)
obs.: Prémio Revelação Ary dos Santos, 1999 (Câmara Municipal de Grândola); dedicatória do Autor
publicado por RAA às 16:34 | comentar | favorito
31
Jul 10

...

Já era nela, antes de ser paixão,
Inquietude em cada momento,
O amor já era dono do seu coração
Ainda antes de sentir o seu tormento.

Abu al-Abdari

(Adalberto Alves)
publicado por RAA às 12:41 | comentar | favorito
30
Jul 10

OS NAMOROS DE VERÃO

O namoro durava o que durava um Verão,
tanto e tão pouco, quase nada.
Era um sopro, uma embriaguez,
um êxtase, com o mar ao fundo
a trazer para o areal algas e conchas,
restos de comida, garrafas vazias,
objectos náufragos, nomes de sereias.
O Verão, às vezes, durava uma vida.
Outras vezes durava uma noite.
Havia uma canção que marcava a cadência
da paixão volátil: Smoke Gets in Your Eyes.
Como seria ridículo dizer isto em português.
Depois havia as cartas e os retratos
com dedicatórias lembrando aquele Agosto,
aquele passeio de barco, aquela
madrugada no Palm Beach
ao som do Yesterday. Era tão veloz
esse tempo que parecíamos envelhecer
uma vida em cada semana.
Se morria um amigo, era como
se morresse para sempre a magia do Verão.
E nunca mais houve amores
como esses, primordiais e inocentes. Totais.
Voltar a eles é tão impossível
como voltar ao aconchego do ventre materno.
O namoro durava apenas um Verão,
mas é sempre a ele que voltamos
quando a palavra amor nos queima os lábios.

José Jorge Letria
publicado por RAA às 14:43 | comentar | favorito
30
Jul 10

O RITMO DO PRESSÁGIO

A tinta das canetas
reflui de antipatia
e impregnadas, assíduas
cambam as borrachas
Não há fita de máquina
que o uso não esmague
o vaivém não ameace
de dessorar os textos
Mas a grafia nada diz
de pausas na cabeça
Vozes inarticuladas
adensam, durante elas
uma tempestade
recôndita
E nubladas carregam-se
as suspensões
encadeando em nós
o ritmo do presságio.

Sebastião Alba
publicado por RAA às 01:25 | comentar | favorito
29
Jul 10

...

Se voltares o rosto
(devagar)
alumias as folhas nuas
da noite.

Fernando Jorge Fabião
publicado por RAA às 17:39 | comentar | favorito
29
Jul 10

quizás, quizás, quizás

quando se está com gripe e nos dói toda a cara
o mal-estar só passa imaginando
que mozart uma vez encontrou nat king cole
e pôs-se a acompanhar
quizás, quizás, quizás

a voz de um era rouca na curva do bolero
e o piano gemendo em graves da mão esquerda
dava a sua resposta a siempre que me preguntas

e triste era o refrão,
quizás, quizás, quizás.

na música e na vida, algum desesperado,
mesmo sem estar com gripe ia perdendo o tempo,
sombrio, alcoolizado, pelas melancolias
da voz e do piano,
quizás, quizás, quizás.

nat king cole e mozart, depois de improvisarem,
fumaram um cigarro e foram-se trocando
trauteios, estranhezas, de
blues e de sonatas,
mas tudo fragmentário,
quizás, quizás, quizás.

se algum saxofone pegasse nesse tema,
juntando variações azuis e lancinantes,
podíamos ouvir um köchel qualquer coisa
be bop e dissonante, quizás, quizás, quizás.

e voltaria a voz em ritmos sacudidos,
no bar, na discoteca, nas sombras, nas entranhas.
nat king cole a cantar, mozart a acompanhá-lo,
ah, turvos corações,
quizás, quizás, quizás.

Vasco Graça Moura
publicado por RAA às 14:24 | comentar | favorito
28
Jul 10
28
Jul 10

...

Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor --
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
a vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

Anna Akhmátova
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)
publicado por RAA às 16:55 | comentar | favorito
26
Jul 10

OS ARAUTOS NEGROS

Há pancadas tão fortes na vida... Eu sei lá!
Pancadas como do ódio de Deus; como se sob elas
a ressaca de todo o sofrimento
estagnasse na alma... Eu sei lá!

Poucas; mas acontecem... Abrem leivas escuras
no rosto mais duro e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de átilas selvagens;
ou os arautos negros que nos envia a Morte.

São as profundas quedas dos Cristos da nossa alma,
de uma fé adorável que o Destino blasfema.
Tais pancadas sangrentas são as crepitações
de um pão que na porta do forno se nos queima.

E o homem... Pobre... Pobre! Volta os olhos, como
quando sobre o seu ombro uma palmada o vem chamar;
volta seus olhos loucos, e todo o já vivido
como um charco de culpa estagna em seu olhar.

Há pancadas na vida tão fortes... Eu sei lá!

Cesar Vallejo

(tradução de José Bento)
publicado por RAA às 16:53 | comentar | favorito
26
Jul 10

DOMINATION OF BLACK

At night, by the fire,
The colors of the bushes
And of the fallen leaves,
Repeating themselves,
Turned in the room,
Like the leaves themselves
Turning in the wind.
Yes: but the color of the heavy hemlocks
Came striding.
And I remembered the cry of the peacocks.

The colors of their tails
Were like the leaves themselves
Turning in the wind.
They swept over the room,
Just as they flew from the boughs of the hemlocks
Down to the ground.
I heard them cry -- the peacocks.
Was it a cry against the twilight
Or against the leaves themselves
Turning in the wind,
Turning as the flames
Turned in fire,
Turning as the tails of the peacocks
Turned in the loud fire,
Loud as the hemlocks
Ful of the cry of the peacocks?
Or was it a cry against the hemlocks?

Out of the window,
I saw how the planets gathered
Like the leaves themselves
Turning in the wind.
I saw how the night came,
Came striding like the color of the heavy hemlocks
I felt afraid.
And I remeber the cry of the peacocks.

Wallace Stevens
publicado por RAA às 13:51 | comentar | favorito