12
Jul 10

PRAIA DO ABANO (OU OUTRA PRAIA)

Vejo subitamente recuares até à tua infância
cruzares ruas montras onde passo agora
e sofro sem remédio não haver saída
em minha vida que não seja a tua face
isenta dos meus olhos vista só por ti

A bola é louca, boca anónima infantil
Ó árvore plantada indiferente de cidade
à mesa onde amarro a minha vida
e corro sem correr para nenhum lugar
distante de onde estou como se já lá estivesse
A cara e o cansaço e os cilindros: prece

Tu és agora uma criança inacessível para mim
e em nenhum país alguma vez te vi
Estou de novo comigo e sofro levantado não haver ninguém
até que enfim deitado eu cumpra a minha condição
e não houve pessoa a que eu não fizesse mal

Ruy Belo
publicado por RAA às 18:16 | comentar | favorito
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A CASA DA AREIA

Face ao mar, orgulhosa no topo do areal,
só madeira e zinco sobre pilares de cimento
ao sabor dos quatro ventos. O quintal
das traseiras sempre uma festa, frango
no churrasco, alegria nos copos. Depois

a Isila casaria com o Freitas,
a Ermelinda ia ficar para tia
e o Horácio dava em droga.
O Neca, o Tino e o Mando foram
à vida, cada qual para seu lado.

Na velha casa virada à baía,
além do ranger da madeira
batida pelo vento e a areia
apenas ficaram a avó Carminda
e a velha cadela «Deixa-falar».

Rui Knopfli
publicado por RAA às 16:09 | comentar | favorito
12
Jul 10

NO SMOKING

Hoje não avançámos muito no silêncio
-- o café lento, um sorriso esquartejado
de pé no balcão de zinco.
Pouco mais, terá de convir.
Um gesto de quem não pode
e espera o desastre, qualquer salvação
dessas, para que seja menos visível
a repressão de um cigarro
ou o açoite do tempo no rosto.
Só não quero falar de literatura,
por amor de um deus qualquer.

Foi disso que falámos, não sei se por pânico
apenas. É tudo tão indesculpável: o corpo
encostado assim à demora de um café,
as palavras que quase foram, quase
puderam -- modo de carícia inútil
que deixei ali para que entendesse ou não
a medida exacta de uma treva minha.

Voltei a vê-la, depois, roubada
por um sonho idiota -- coisa
inenarrável em volta de livros
e de igrejas barrocas com elevador central.

Mas também aí não avançámos muito.
E o silêncio existe, pelo menos este.

Manuel de Freitas
publicado por RAA às 14:57 | comentar | favorito