13
Jul 10

PASSANOUTE

Cacilda espevita o fogo mortiço. Inquietas,
insidiosas, chegam as vozes da noite.
Do fundo da mata vêm mal distintas
crepitações, ruídos, quiçá mesmo gemidos.
Arrasta-se o rumor arrepiante, calafrio

da sombra reverberando noutras sombras.
Negras, esvoaçam asas sem ave, ou
será apenas a noite e só a noite?
Xipocué e shiguêvengo acordam
no cerne das árvores, para agitar

mortos e mortificar vivos. Lumes
sem chama, vozes sem fala assombram
de susto e medos inomináveis
quem arrosta afrontar seu território,
zona interdita, chão demarcado

que poucos ousam pisar e percorrem,
sopro maléfico, a densa escuridão. Vamos,
levanta faúlhas e labaredas, incendeia
de luz a noite cerrada, esconjura
para bem longe essa asa funesta.

Rui Knopfli
publicado por RAA às 18:22 | comentar | favorito

MÃE

Minha Mãe:
Trago a resina das velhas árvores
da floresta nas minhas veias
e a sina de nascença
no meio das baladas à volta da fogueira
tu sabes como é sempre uma dor nova
sabes ou não sabes, minha Mãe?

Sabes ou não sabes
o mistério de olhos inflamados de macho
que um dia encontraste no teu caminho
de tombasana de pés descalços?

Sabes ou não sabes, Mãe
a resina das velhas árvores plantadas pelos espíritos
as blasfémias dos mortos salgando as raízes virgens
e as grandes luas de ansiedade esticando
... as peles dos tambores enraivecidos
e dando às folhas verdes das palmeiras
o brilho incandescente das catanas nuas?

E no sabor do encantamento, Mãe
dos nossos desenfeitiçados feitiços ancestrais
o exorcismo ingénuo das tuas missangas
o maravilhoso maheu das tuas canções
e o segredo do teu corpo possuído
mas de materno sangue inviolável
donde a minha sina nasceu.

No
espaço da tua sepultura de negra
sabes ou não sabes a verdade
agora sabes ou não sabes
minha Mãe?
publicado por RAA às 16:45 | comentar | favorito

LEZÍRIA

São duzentas mulheres. Cantam não sei que mágoa
Que se debruça e já nem mostra o rosto.
Cantam, plantadas n'água,
Ao sol e à monda neste mês de Agosto.

Cantam o Norte e o Sul duma só vez,
Cantam baixo, e parece
Que na raiz humana dos seus pés
Qualquer coisa apodrece.

Miguel Torga
publicado por RAA às 14:55 | comentar | favorito
13
Jul 10

AMSTERDAM

Eu sabia que os telejornais acompanhavam o assunto,
a par e passo, a cores ou a preto e branco mas não
tinha tempo para ver televisão nem para comprar jornais.

Corria de museu para museu, ingenuamente procurava
apanhar um retrato vivo da cidade, comprava batatas
fritas na rua para não perder tempo em restaurantes
e nunca me cansava.

À noite tinha jazz, com muito sumo de laranja, quase
sempre no «Mistery Club» até à meia-noite e cinco,
pontualmente, para apanhar o último eléctrico com
destino a Amstel Station.

Quando cheguei e me perguntaram se tinha tido medo
dos terroristas fui obrigado a responder que não --
dos polícias, sim, tenho medo: São espantosamente
novos, louros, corpulentos e passeiam-se na rua
com a arrogância de quem se sabe impune.

José do Carmo Francisco
publicado por RAA às 12:08 | comentar | favorito