30
Set 10

...

Eles lá vão, dando à noite brasa,
Das vestes do sono despojados.

Com húmidas penas e penugem de asa
Corvos da treva os têm abrigados.

Do nocturno ventre ao dorso do dia
Ascendem possuídos de tenaz alento.

Que têm para o medo e para a noite fria?
Couraças de treva, garanhões de vento.

Se perdidos fossem na noite cerrada
O fulgor de 'Umar mostraria a estrada.

Ibn 'Abdun

(Adalberto Alves)
publicado por RAA às 23:47 | comentar | favorito

...

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
dizendo: Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!

Camões
publicado por RAA às 19:31 | comentar | favorito

...

a meio da noite disse, romperam-se as águas,
e ele, sem saber porquê, acendeu a luz,
procurou os óculos em cima da mesa-de-cabeceira.
uma luzinha reflectia nos olhos dela,
percebia-se como estava assustada.
é agora, pensou. levantou-se da cama
e foi ser pai pela vida fora.

Luís Filipe Cristóvão
publicado por RAA às 17:34 | comentar | favorito

ENQUANTO TARDA O INCÊNDIO

no inverno em séculos passados
falava-se de animais

junto à lareira comentavam os mais velhos
paisagens de sol
e o vento como sendo a distância
entre a noite e o bosque

nas manhãs frias olhava-se
com calma
a neve

à volta dos sobreiros as crianças brincavam
agasalhadas
de azul

hoje, enquanto o incêndio tarda
vou sendo feliz
entre os sobreiros

Daniel Maia-Pinto Rodrigues
publicado por RAA às 14:18 | comentar | favorito

DIÁRIO DE BORDO

Cá estou eu a julgar que vou remando...

Cá vai Deus a remar
e eu a ser um remo com que Deus
rasga caminhos pelo Mar...

Sebastião da Gama
publicado por RAA às 12:39 | comentar | favorito
30
Set 10

A UMA QUALQUER

Não foi por amor ao dinheiro
nem foi por jóias
nem sequer por um vestido de seda.

Nem foi também por teres casa
móveis decentes, melhor vida.
Não, não foi por nada disto.

Tu, só tu sabes por que sorriste
e o teu coração bateu um pouco mais forte
quando o barco americano entrou no porto...

Yolanda Morazzo
publicado por RAA às 10:53 | comentar | favorito
29
Set 10

VARIAÇÃO SOBRE ROSAS

Como as rosas selvagens, que nascem
em qualquer canto, o amor também pode nascer
de onde menos esperamos. O seu campo
é infinito: alma e corpo. E, para além deles,
o mundo das sensações, onde se entra sem
bater à porta, como se esta porta estivesse sempre
aberta para quem quiser entrar.

Tu, que me ensinas o que é o
amor, colheste essas rosas selvagens: a sua
púrpura brilha no teu rosto. O seu perfume
corre-te pelo peito, derrama-se no estuário
do ventre, sobe até aos cabelos que se soltam
por entre a brisa dos murmúrios. Roubo aos teus
lábios as suas pétalas.

E se essas rosas não murcham, com
o tempo, é porque o amor as alimenta.

Nuno Júdice
publicado por RAA às 23:03 | comentar | favorito

...

quando chegou ao Inferno foi enviado de imediato para a sala Jazz
outro tenor jazz-saxofonista
o som que vinha da Sala era o melhor
uma big band
entrou e sentou-se entre Hawkins e Coltrane
maestro arranjador Gil Evans
só extra ordinários
Eldridge, Dizzy, Armstrong, Bowie, Miley, Baker, às trompetes,
trombones com trombonistas, também eles, de excepção,
uma secção rítmica do outro mundo,
mundo onde estavam,
Art Blakey, Paul Chambers, Bill Evans,
tocaram o resto da tarde sem parar,
a noite toda,
ao fim da manhã seguinte
segredou ele para Trane
'quando é o intervalo? para descansarmos...'
Trane contente: 'Nunca!'

José Duarte
publicado por RAA às 19:06 | comentar | favorito

NÃO OLHE PARA TRÁS

Caiu no buraco
saiu de quatro
se arrastou um pouco
levantou dum pulo
disparou dez passos
riu para a galeria
caiu de quatro, como
um cavalo machucado
como um filho da puta
como água usada.

Roberto Schwarz
publicado por RAA às 17:40 | comentar | favorito
29
Set 10

INSTANTE

A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.

Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Pára também, a ver.

Miguel Torga
publicado por RAA às 15:44 | comentar | favorito