02
Set 10

SITUAÇÃO

No coreto do vazio
uma banda inexistente
toca músicas nocturnas
já ninguém escuta o concerto
ninguém baila já no adro
as cadeiras estão vazias
e o terreiro abandonado

mas a banda vai tocando
na noite fria e esquecida

Levi Condinho
publicado por RAA às 23:48 | comentar | favorito

...

Tua frieza aumenta o meu desejo:
Fecho os meus olhos para te esquecer,
Mas quanto mais procuro não te ver,
Quanto mais fecho os olhos mais te vejo.

Humildemente, atrás de ti rastejo,
Humildemente, sem te convencer,
Antes sentindo para mim crescer
Dos teus desdéns o frígido cortejo.

Sei que jamais hei-se possuir-te, sei
Que outro, feliz, ditoso como um rei,
Enlaçará teu virgem corpo em flor.

Meu coração no entanto não se cansa,
Amam metade os que amam com esp'rança,
Amar sem esp'rança é o verdadeiro amor.

Paris, 29 de Setembro de 1889

Eugénio de Castro
publicado por RAA às 20:16 | comentar | favorito

...

O estilo do vinho (também serve: o vinho do estilo) advém do seu
outono, da sua maturidade -- do corpo substantivo da idade.
Casimiro de Brito
publicado por RAA às 17:27 | comentar | favorito

LAMENTO DA MARICOTA

-- «Bom dia, senhor José.
Como passou? Passou bem?»

Mas o senhor José virou a cara,
rudemente, com desdém.
E a pobre Maricota, que passara
mesmo ao lado,
a Maricota ficou
a cismar, a dizer com ar banzado:

-- «Aiué, senhor José!
Para quê fazer assim?»

Geraldo Bessa Victor
publicado por RAA às 16:49 | comentar | favorito

ANTO

Caprichos de lilás, febres esguias,
Enlevos de Ópio -- Íris-abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias...

O pajem débil das ternuras de cetim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe das Ilhas transtornadas --
Senhor feudal das Torres de marfim...

Lisboa, 14 de Fevereiro de 1915.

Florbela Espanca
publicado por RAA às 14:20 | comentar | favorito

SONETO

Porque nasci ao pé de quatro montes,
Por onde as águas passam a cantar
As canções dos moinhos e das fontes,
Ensinaram-me as águas a falar...

Eu sei a vossa língua, água das fontes...
Podeis falar comigo, águas do mar...
E ouço, à tarde, os longínquos horizontes
Chorar uma saudade singular.

E, porque entendo bem aquelas mágoas
E compreendo os íntimos segredos
Da voz do mar ou do rochedo mudo,

Sinto-me irmão da luz, do ar, das águas,
Sinto-me irmão dos íngremes penedos,
E sinto que sou Deus, pois Deus é tudo...

Cândido Guerreiro
publicado por RAA às 12:26 | comentar | favorito
02
Set 10

DOIS POEMAS DO MAR

Partir,
deixar a ilha tão pequena
que o vento nómada
bafeja
e as ondas do mar
rodeiam.

Fugir,
buscar terras mais ao longe
onde a alma errante
caminhe.

Partir,
deixar na terra o canto duma morna
que o emigrante
recorde.

Fugir,
deixar no mar o sulco branco
da hélice do vapor,
que as vagas mansas
apaguem...

Nos olhos a saudade retratada
da distância percorrida.

Noites de vigília
sonhando com a distância longínqua
o caminho por andar.

(Minha estrada de vagas verdes,
cintilação de salitre nas faces,
canção de ondas no costado.)

Só nos olhos
(saudade estranha)
a distância percorrida,
-- por percorrer.

Arnaldo França
publicado por RAA às 11:05 | comentar | favorito