03
Set 10

Universário

autor: José do Carmo Francisco (Caldas da Rainha, 1951)
título: Universário
edição: 1.ª
prefácio: J. O. Travanca-Rêgo
colecção: «Círculo de Poesia»
edição: Moraes Editores
local: Lisboa
ano: 1983
págs.: 68
dimensões: 20x15,5x0,6 (brochado)
fotocomposição e montagem: Linopazas
impressão: Moraes Editores
publicado por RAA às 23:41 | comentar | favorito

...

Nuvens correndo num rio
Quem sabe onde vão parar?
Fantasma do meu navio
Não corras, vai devagar!

Vais por caminho de bruma
Que são caminhos de olvido.
Não queiras, ó meu navio,
Ser um navio perdido.

Sonhos içados ao vento
Querem estrelas varejar!
Velas do meu pensamento
Aonde me quereis levar?

Não corras, ó meu navio
Navega mais devagar,
Que nuvens correndo em rio,
Quem sabe onde vão parar?

Que este destino em que venho
É uma troça tão triste:
Um navio que não tenho
Num rio que não existe.

Natália Correia
publicado por RAA às 19:04 | comentar | favorito

PANORAMA

Ao longe
na distância da manhã por vir,
na indecisão das camuflagens
e do rumor da guerra,
há agonias esbatidas no negro-fumo
da pólvora
dos homens que se batem.
Aquém, é a luta na retaguarda!

Às dores que nos campos de batalha
o golpe de misericórdia é dado
pela metralha,
correspondem nas fileiras de trás
ansiedades intérminas de almas
e lutas maiores...
Há evacuações despedidas, alarmes,
e notícias de comboios torpedeados.
Há a guerra dos nervos destrambelhados:
A guerra que ficou em nós
das notícias de guerra!
E há noites incalmas
de almas
que escrevem poemas
aos poemas dos nossos nervos em guerra.

E fica-nos a certeza
de que há um «front» em toda a gente.
A leste, ao sul, no espaço.
Em nós
há guerra. -- Aqui e além.

Guilherme Rocheteau
publicado por RAA às 17:07 | comentar | favorito

OUTRA VIDA

Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
de sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
lei que me condenou à tortura constante;
porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
na minha solidão a sua voz escuto,
e sinto, contra o meu, o seu hálito frio.

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio...

Francisca Júlia
publicado por RAA às 14:21 | comentar | favorito

CANÇÃO DO NU

Lindo
Mármore precioso que na alcova
Surpreendi dormindo!
E lindo
À luz dum fósforo, acendido a medo,
Despertou sorrindo.
E, lindo,
Dos olhos as meninas me saltaram
Para o nu que se estava descobrindo.

Linda!
Ficou-se ao desgasalho adormecida,
Ai vida,
Como ainda não vi coisa tão linda.

Linda,
Braços abertos em desnudo amplexo,
Seu corpo era uma púbere mendiga,
E ele é que estava pedindo,
Lindo,
O meu sexo.

Afonso Duarte
publicado por RAA às 12:45 | comentar | favorito
03
Set 10

AQUELA CANÇÃO FATAL

A horas mortas da noite,
Canta uma voz de mulher...
Não sei que drama adivinho
Na sua canção qualquer!

Quem canta assim, altas horas,
E acorda a rua tranquila?
Faz-me pena essa canção
E, entanto, gosto de ouvi-la!

É uma canção de amor,
Pobre, anónima, vulgar.
Mas é cheia de amargura:
Escuto-a e dá-me em chorar!

Recordo, então, o passado,
Que julgava morto em mim.
-- Coração, porque acordaste?
-- Ó dor, porque não tens fim?

-- Porque acordaste, passado,
Porque voltaste, afinal?
-- Maldita a hora em que ouvi
Aquela canção fatal!

Cala-te, voz doce e triste,
Deixa, por Deus, de cantar!
Dorme, dorme, coração,
Não tornes mais a acordar!

Rebelo de Bettencourt
publicado por RAA às 11:13 | comentar | favorito